sábado, 29 de setembro de 2012

Organização


organização
s. f.
1. Ato ou efeito de organizar.
2. Organismo.
3. Estrutura.
4. Fundação, estabelecimento.
5. Composição.

Agora no quarto, entregue à minha sorte, teria de encontrar uma organização que eu pudesse assegurar.

O dia começava pelas 7h00, pois tinha medicação a tomar, e quase todos os dias havia sangue a tirar, Era o enfermeiro quem se encarregava, e antes das 7h00 já acordara logo que escutava os passos no corredor. Ouvia um pouco de rádio, até ir tomar banho, pelas 8h30. Nos primeiros dias o banho era apoiado por um auxiliar que me ajudava nos diversos movimentos; o WC estava mal adaptado, e tinha dificuldade em o utilizar. Pelas 9h00 vinha o pequeno almoço, entretanto já tinha comido alguma coisa, para tomar a medicação pelas 8h00, daqueles copinhos que já falei. Começava a ter fome, muita fome, e comia tudo o que me era dado. O resto da manhã era um corropio.

Quase todos os dias havia raios X, electrocardiogramas, fazer a cama e limpar o quarto, para o que tinha de me sentar no cadeirão para não atrapalhar, havia ainda fisioterapia, de tal forma que muitas vezes atrapalhavam-se uns aos outros, e o meio dia chegava muito depressa. Quando já estava melhor, e tinha tempo, aproveitava para fazer "corredores", isto é andava corredor acima e abaixo, primeiro apoiado pela Sandra, a fisioterapeuta, mais tarde sózinho agarrado às paredes e com muito cuidado. Colocava sempre uma máscara para me proteger.

O almoço vinha por volta das 13h00, e na actual modalidade lá vinha a caixa azul, isotérmica, com a refeição a escaldar. Um dos dias colocaram lá uma gelatina, por engano, e vinha em água...
Agora tinha ainda um novo brinquedo para me entreter, um dispositivo para medir a glicémia, e uma caneta para administrar a insulina, tinha também conhecido a Drº RBM, jovem endocrinologista, que me explicou tudo e me acompanhava no que se referia aos diabetes. Antes de pequeno almoço, almoço e jantar havia que picar o dedo para medir a glicémia, e administrar insulina com a tal caneta, com a qual dava uma picada na barriga ou nas coxas.

Após o almoço descansava. Os pés e as pernas muitos inchadas recomendavam descanso; era um peso que deixava de sentir durante cerca de duas horas, até chegar o lanche pelas 16h00. Durante esse tempo dormia, ou ouvia música no iPod. Entre o lanche e o jantar, cerca das 19h00, lia, pois preferia a manhã para escrever, por haver mais luz, e para me recordar mais facilmente do sucedido. Já nesta altura começava com alguns problemas de vista. O jantar vinha cedo. Com frequência tinha visitas por essa hora, sobretudo as filhas, pois a MA, quando vinha escolhia a hora de almoço. Assim tinha quase sempre apoio para as refeições, pois os movimentos ainda não eram à vontade.

O jantar seguia rapidamente o mesmo caminho das outras refeições. A fome apertava, tinha perdido muito peso, mais de 20 quilos e a medicação abria o apetite. Após o jantar e a saída das visitas, pelas 20 horas era a tlevisão que me interessava. Notícias, debates, até cerca das 22 horas. Foi ali que apanhei o hábito de ver o Jornal das 9h, do Mário Crespo, visto em geral já na cama, pois já não suportava o cadeirão, e as pernas altas, devido ao edema, incomo davam-me. A ceia só era servida muito próximo da meia noite, pelo que até lá apagava todas as luzes e ouvia música no iPod, por vezes adormecia. Era um sossego, por vezes adormecia e era acordado para a ceia, e para alguma coisa que a enfermagem quisesse, medicação, avisar das análises do dia seguinte, para estar de mente preparada, dada a dificuldade da recolha. Colocar o urinol à mão, pois de noite era um desatino, os medicamentos para a manhã, ali à mão para não ter de levantar, água, liquido para desinfectar as mãos, iPod, telemóvel para poder ouvir rádio de manhã, comando do ar condicionado, pois estava frio, compressas, e de luz apagada adormecia, para um sono pouco duradouro, , pois acordava muitas vezes para urinar. Muitas e muitas vezes. Começava também a ter dores muito intensas na coluna.

À medida que ía sentndo maior autonomia e capacidade de me movimentar, fui dando cada vez mais e maiores voltas no corredor. Descubro o centro espiritual, de que falarei depois, e ía com frequência lá. Senti alguma solidão neste quarto, mais do que no isolamento que permitia ver o exterior, no quarto não.. Mas a solidão jamais me preocupou, não sou daquelas pessoas que precisa de estar sempre acompanhada, gosto do silêncio, sei ocupar a minha cabeça e detesto confusão. A solidão acalma-me. A solidão protege-me. E ali tinha essa calma que a solidão me proporcionava. Sentia melhorias significativas, e o melhor de tudo, tinha saltado uma barreira para o "lado de lá", por muitas coisas que viessem a acontecer não voltaria atrás, o que devia ter sido feito estava feito,. Agora era sair por cima, mas o dificil estava superado e este novo "coração" não me iam tirar já. Era uma boa sensação, tinha valido a pena tanta espera, tanta esperança e tanto desespero. A morte estava, pelo menos por agora, superada!

Estive neste quarto de 5 a 27 de janeiro, e dele saí directamente para casa.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Enfermaria


enfermaria
s. f.
Nalguns estabelecimentos, local onde se instalam os doentes ou se atendem os feridos ou lesionados.

Após os dez dias de isolamento estava finalmente na "enfermaria". Na realidade não se tratava de uma enfermaria, onde mais tarde haveria de estar, mas por agora tratava-se de um quarto. Acontece que em S. Marta não há quartos particulares, e estes dois quartos disponíveis na enfermaria de cirurgia cardio toráxica, apenas se destinavam a alojar transplantados nesta fase, para que não saiam directamente do isolamento para o meio dos restantes doentes, dado o risco permanente de contaminação.

Foi assim que fiquei alojado num quarto simples, com uma casa de banho privativa, duas mesas, uma cadeira e um cadeirão e um armário de lata para além da cama articulada.  Foi colocada uma televisão. Num primeiro momento a minha sensação era de "peixe fora de água". Tinha liberdade, estava desligado de todas aquelas máquinas, mas por manifesta incapacidade não sabia que fazer com essa liberdade. Mexia-me com dificuldade, e os movimentos mais simples implicavam apoio, mas agora ía ficar sózinho, sem o enfermeiro a olhar por mim 24 sobre 24. Em caso de necessidade teria de chamar alguém.

Naquele quarto a porta estava sempre fechada, das janelas nada se via, pois tinham sido seladas e colada uma película fosca nos vidros. Até o espelho da casa de banho tinha sido retirado. Teriam medo de que os pacientes se suicidassem ?...

Quando a porta se abria, quem entrava tinha de colocar uma máscara, e eu não podia por enquanto sair. Só uma visita de cada vez. A arrumação das minhas coisas foi feita com alguma dificuldade, tudo parecia estranho, sem lugar, eu próprio, tendia para estar na cama, único local óbvio para estar, embora me pudesse levantar. Começa agora a reaprender a movimentar-me por mim, coisa que já há algum tempo não sucedia.

Tinha agora em cima da mesa uma coleção de caixinhas cilindricas com tampa vermelha, onde se encontravam cada um dos inúmeros medicamentos que teria de tomar a partir de agora. Tomar conta dessa medicação, prepará-la, tomá-la a tempo e horas, seria uma das minhas tarefas, a que tinha a partir de agora de me habituar. Aproveitar para actualizar os meus registos, que tinham sido interrompidos durante o período de isolamento. Entretanto começava a ter os primeiros sintomas pós transplante: tinha apanhado um "herpes labial", um virus oportunista que viera comigo do isolamento, começava a ter fortes sinais de edema, com as pernas e pés muito inchados, desde as virilhas até á ponta dos dedos dos pés, o que dificultava pôr os pés no chão e andar, pois estes pesavam "toneladas". Por sugestão do pessoal, passava muito tempo com os pés levantados, e mesmo na cama, dormia com os pés mais altos. Reforçaram as doses de diuréticos, com pouco resultado. Muitos meses depois ainda teria o edema embora fosse regredindo. Os pés elevados, acabei por pagar a factura com a degradação da minha coluna, que me doía muito, e ainda hoje, mais de ano e meio depois continua a perturbar-me.

Voltar


voltar - Conjugar
v. tr.

1. Dar volta a, volver, virar; pôr do avesso.
2. Mostrar ou apresentar pelo lado ou face oposta.
3. Dar em troco.
v. intr.
4. Regressar.
5. Tornar a vir.
6. Reaparecer, tornar.
7. Replicar, responder; dar volta ou voltas; tornar a fazer.
8. Mudar de rumo.
9. Fermentar segunda vez; toldar-se, turvar-se.
10. Retroceder.
11. Reincidir.
v. pron.
12. Virar-se, apresentar a cara a quem vem ao lado ou atrás.
13. Dirigir-se, recorrer.
14. Revolver-se, virar-se; dar voltas (na cama); investir, acometer.

Tinha agora voltado ao inicio de um percurso que me conduziria, não se sabe onde. Tinha sido retirada a ventilação, e aos poucos iriam sendo retirados tubos, sondas, algália. Muita coisa mudava. Desde logo a medicação. Eu deixara de ser um doente cardíaco no sentido habitual, terminava a medicação para a tensão, para as arritmias, para estimular o coração, e no seu lugar apareciam agora outros "pesos pesados", como a ciclosporina, um imunosupressor, que tomava dosesndo com uma pipeta uns miligramas para dentro de um copo terapeutico, onde era misturado com sumo compal, para disfarçar o seu sabor insuportável. Tomava ainda um segundo imunosupressor, o micofenelato. Seguiam-se corticóides em dose de cavalo, analgésicos, insulina, pois a partir de agora ía fazer parte do grupo dos diabéticos insulinodependentes, anti virais, entre outros.

A minha entrada em isolamento deu-se a 27 de Dezembro e lá permaneci cerca de dez dias, afinal coisa pouca, pois sempre me preparara para um mês o mínimo. De facto um companhiro, no quarto ao lado, já lá se encontraca há três meses, e ainda por lá ficou muitos mais, mas eram casos em que as complicações se sucedem, sem ser possível dominá-las de forma eficaz.

Agora respirava normalmente, sem apoio, o que era muito bom, pois a ventilação forçada atrapalha,  causa um grande mal estar, além de impedir falar, beber e comer normalmente. E a evolução foi-se dando. Primeira vitória, virar-me na cama, sózinho. Depois de ajeitar cuidadosamente os fios e os tubos, para posição mais adequada, dar um impulso, suportar a dor, e voltar-me. Isto aconteceu ao fim de dois dias. A primeira saída da cama, para o cadeirão, ainda no isolamento. Ao fim de dois ou três dias, e o tempo no cadeirão foi aumentando gradualmente, movimentos sempre com o apoio do enfermeiro que tomava conta de mim 24 sobre 24. Pôr-me de pé, agarrado ao enfermeiro, à cama e à cadeira, dar alguns passos. Desde logo se notava a melhoria que o novo coração trazia. Nunca coisa simples, o falar. Antes quase não conseguia falar, ao longo do dia ía perdendo a voz, à noite nem falava ao telefone, pois o esforço já não era tolerável, agora a minha voz voltava pouco a pouco.

As visitas decorriam nos mesmos horários da UCIC. A diferença estava "apenas"na necessidade destas se equiparem a preceito, com máscara, toca, túnica protectora, e quer o paciente quer a visita lavarem as mãos com desinfectante para se poderem tocar sem risco de contaminação. Os dias passavam, por vezes os enfermeiros falavam comigo e davam umm retorno de informação, que permitia ir-me apercebendo do evoluir, e quão perto ou longe me encontrava da data em que abandonaria aquele local, que mais parecia um aquário, onde um único peixe nadava, isolado mas seguro. Do lado de fora passava um corredor, onde reconhecia pessoal da UCIC, onde tinha estado tantos meses, que vinha dizer-me adeus, ver se tinha mesmo sobrevivido, mas em geral não entravam. Sabiam que quanto menos visitas melhor. Numa das vezes um grupo de enfermeiros, a Célia entre outros, vieram e encostaram um papel junto da vidraça onde estava escrito "Boa Sorte Melhoras !!!". O pessoal era inexcedível e torcia por mim. As coisas pareciam agora estar a virar, e voltaria decerto a viver.

Como sempre Dr RS, parco em palavras, não dava indicações de datas. Apenas ao fim de sete ou oito dias começou a dizer que as coisas estavam bem, prudente, e que talvez saísse dali em breve. Fiquei admirado com a rapidez do processo.

Um dos pontos que dificultava era a comida, empapada, sem sabor, e sobreaquecida, mas aos poucos habituei-me. Tinha mesmo de comer, como se de um medicamento se tratasse, pois tinha emagrecido muito, perdido massa muscular o que iria perturbar a recuperação física, nomeadamente o andar, que era ainda impossível. Quanto à saída esta dependeria como sempre de não ter "intercorrências" e de me autonomizar daquelas máquinas a que estava ligado. No dia em que delas me libertasse, a saída estava próxima, pois o choque com o exterior seria importante para testar a minha resistência às agressões dos agentes patogénicos, que espreitavam por todo o lado. Ali dentro eram mantidos "na ordem". Mas o desligar das máquinas era gradual, todos os dias tiravam uma coisa, uma sonda, um tubo, um cateter, uma algália, um fio, um saco, enfim, ía ficando liberto das peias.

Tudo ficou claro no dia em que o Dr RS me disse "amanhã sai para a enfermaria". O Dr RS era assim, só falava com base em certezas. Não corria risco de alimentar falsas expectativas, que para estes doentes era o pior, pois havia tantas possibilidades de tudo correr mal inesperadamente.

Nesse dia fui tomar banho, o primeiro na casa de banho, no exterior, desde o transplante, tinham passado dez dias. Até aqui tinham sido "banhos de gato". Foi um banho sentado num banco, e com ida e vinda em cadeira de rodas, não valia a pena desperdiçar energia. Tudo pronto, arrumadas as coisas, e fui transferido para a enfermaria, deixando de vez aquele local onde tinha passado os primeiros dias, pós transplante, onde passara a passagem de ano de 2010 para 2011, ouvindo os "foguetes" no exterior e o simples "reveillon" feito pelos enfermeiros, médicos e auxiliares, no corredor, onde não pude participar, claro.

O isolamento tinha sido muito mais "benigno" e limitado no tempo do que jamais tinha imaginado, e a partir de agora, começava a viver uma vida mais próxima da realidade, menos protegido, não estaria mais no aquário, como um animal em vias de extinção, protegido de um mundo agressivo, mas começaria o caminho da desejada autonomia. Ao final da manhã do dia 5 de Janeiro 2011, levaram-me para a "enfermaria", que afinal era um quarto !!!

domingo, 23 de setembro de 2012

Isolamento


isolamento
(isolar + -mento)
s. m.
1. Ato de isolar ou de se isolar. = ISOLAÇÃO
2. Estado de pessoa ou coisa isolada. = ISOLAÇÃO
3. Separação completa.
4. Solidão.

Após a realização da cirurgia, já sabia que teria de ficar em isolamento durante um período de tempo incerto, o que dependeria da minha reação e das eventuais "intercorrências". Antes da operação imaginava algo ainda mais complicado, pois não fui visitar o local préviamente, por manifesta incapacidade de me deslocar. Se o tivese feito, e recomendo que se faça, talvez ficasse mais consciente do que se iria passar, e teria sido melhor.

Em S. Marta há três locais de isolamento, três quartos de dimensões generosas, equipados com toda a instrumentação necessária para o suporte de vida, com o material necessário ao qual os pacientes estão ligados para monitorização dos parâmetros, medicação, alimentação, entre outras funções. Os inevitáveis alarmes lá estão em permanência a dar toques em função das situações que pedem intervenção mais ou menos urgente. O quarto possui uma antecâmara, isolada do quarto por uma porta e uma parede de vidro, onde um enfermeiro se encontra 24 sobre 24, cuja única função é tomar conta do paciente transplantado. O enfermeiro quando entra na zona de isolamento própriamente dita, equipa-se com máscara, toca e uma túnica, para evitar ser portador de potenciais riscos de infeção. O mesmo procedimento se aplicaria a visitas (quando as tivesse), auxiliares, pessoal que entrega alimentação, médicos. Claro que o quarto se encontra em sobrepressão, pelo que a tendência do ar é sempre a sair, sendo injectado sempre ar novo e filtrado. Nota-se sempre um ligeiro sopro que resulta dessa entrada de ar.

Antes do transplante, e dada a demora, cheguei a pensar que, o facto de existirem poucos isolamentos, apenas três, onde se pode permanecer 6 meses ou mais (embora raramente tanto tempo), poderia ser um limite que impediria o transplante, obrigando a perder oportunidades. Mas o Dr RS cedo esclareceu que não, pois segundo ele, embora se pratique sempre, não é imperativo este período de isolamento para os transplantados cardíacos ( não é o caso dos pulmonares), podendo os transplantados ficar apenas em cuidados intensivos, como sucede em alguns países onde essa parece ser a prática.

Assim, acordei no isolamento, ventilado, com a boca seca, cheio de agrafes no peito, totalmente incapaz de me movimentar na cama, devido a dores, com sondas coladas no peito, vários tubos saíam do meu corpo que conduziam fluidos que asseguravam medicação, ou retiravam plasma, restos de sangue ou urina, e que saíam deste corpo agora inerte. A sensação que tinha era "Safei-me !!!".

As poderosas máquinas que se encontravam por detrás da minha cabeceira, que só vía pelo reflexo no vidro que separava o quarto da antecâmara, produziam os mais diversos sinais sonoros, que me permitia saber que estavam atentos à minha pessoa. O coração, esse novo orgão "usado mas em bom estado", funcionava, sentia a sua cadência certa, e podia ver no monitor a curva do electrocardigrama, normal, com o batimento sinusal correcto, nada comparável com a total anarquia que era antes de transplantado. Por vezes o enfermeiro entrava, equipado a rigor, verificava alguma coisa, limpava a tubagem do ventilador, ou acenava para mim, que não me podia mexer. A alimentação também era especial, meio liquefeita, numa curta fase inicial, e pouco a pouco foi passando ao normal. mas normal para transplantados, com talheres e recipientes descartáveis, sobreaquecido tudo em forno, fornecida numa caixa isotérmica azul, a escaldar, para que toda a possibilidade de infeção fosse eliminada, por acção da temperatura.

Foi aqui que passadas poucas horas, pelo final da manhã me foi retirada a ventilação, e comecei a respirar pelos meus meios, mantendo apenas o fornecimento de oxigénio, através de uma sonda nasal, o que de imediato melhorou a minha qualidade de vida. Foi tudo tão rápido que quase não queria acreditar que na véspera por esta hora estava ainda prostrado naquela longa espera sem novidades. De repente tudo mudou, depressa e bem, por enquanto. O pessoal que acompanhava estava optimista, o Dr RS, entretanto veio, não o via desde o anúncio de ontem, e pelas suas palavras e sorriso percebi que para já tudo estava bem. O essencial estava feito. Veio também o Prof JF, que dirigiu a operação, e que pela segunda vez mexia no meu peito, e tinha sangue meu nas suas mãos. Deu ânimo, e confirmou o veredito, tudo correra como se esperava.

Transplante

 
 
transplante
(derivação regressiva de transplantar)
s. m.
1. [Cirurgia]  Operação que consiste na transferência de um tecido, órgão ou parte dele para outra parte do corpo do mesmo indivíduo ou para outro indivíduo (ex.: transplante de medula óssea). = TRANSPLANTAÇÃO
2. [Cirurgia]  Fragmento de tecido ou órgão que se transplanta.

Sinónimo Geral: ENXERTO

transplantar - Conjugar
(trans- + plantar)
v. tr.
1. Arrancar de um lugar para plantar noutro.em outro.
2. [Cirurgia Transferir tecido, órgão ou parte dele para outra parte do corpo do mesmo indivíduo ou para outro indivíduo. = ENXERTAR
v. tr. e pron.
3. [Por extensão]  Fazer passar ou passar de uma região para outra.
4. [Figurado]  Traduzir; trasladar.


Nada sei do meu transplante cardíaco. A partir do momento do apagão, tudo se passou ao lado, dentro de mim, comigo, mas sem de nada me aperceber. Entrei pelas 19h e acordei pelas 8h da manhã segunte, entubado, ventilado, com muitos fios e tubos a sair do corpo, ligados a gigantes máquinas que emitiam sons estranhos, bips, alarmes. A dor geral impedia-me de mexer o corpo, e o tubo no nariz e boca incomodava. Já tinha passado por isto aquando do meu by-pass triplo há 3 anos.

De resto foi uma noite descansada, maior do que o habitual; soube pelos enfermeiros que a cirurgia se iniciou pelas 21 h e terminara próximo das 2h da manã, já era segunda feira. Tinha sido rápido, para o que eu previa. ,Soube porque me disseram. De resto tinha consultado na internet, e no que fui lendo. O coração do dador permanece com o seus sinais vitais, a corrente sanguínea é desviada, e, à medida que se retira o orgão danificado, o meu, se vai introduzindo no espaço livre o coração do dador, . Nem sei se é assim. Depois é fixar as diversas artérias e veias que entram e saem do orgão, e repôr a circulação com o orgão a bater. É como se um sopro de vida se comunicasse, como se a vida que definitivamente se escapou do dador, se mantivesse concentrada naquele pedaço de músculo, e eu tivesse sido contagiado por ela. Um milagre operado por aqueles homens e mulheres que tocam a vida e com as suas mãos a transferem de um corpo para outro, de um que morreu para outro que quase morre. Aqui apenas um sinal de morte que cria e mantém a vida no outro. Sentimos, pensamos, somos capazes de racionalizar, mas operou-se um "milagre", a mão do homem foi a executora das decisões de Deus. Não houve sofrimento, dor, pânico, medo, mas apenas a serenidade de mais uma noite dormida. Tudo afinal tinha corrido como sempre esperara. Sem surpresas ou imprevistos.

Anúncio


anúncio
(latim annuntium, -ii, que anuncia)
s. m.
1. Aviso ou notícia que se dá de alguma coisa. = COMUNICAÇÃO
2. Mensagem escrita ou audiovisual que promove determinado produto ou serviço nos principais meios de comunicação.
3. Sintoma, indício.

Tinham-me sempre dito que na altura do Natal é que é !!! Mantenha a calma, mantenha-se em bom estado, vivo, tenha esperança, no Natal, infelizmente para os outros, a disponibilidade de orgãos para transplante aumenta, e isso é uma nova esperança.

À medida que a data se aproximava a esperança aumentava. A partir da reentrada na lista de espera, após aquela infeção indesejada, a perspectiva de obter um novo coração alimentava o sonho de sair daquela cama..., para uma vida quase normal. Entretanto, a regra de que é preciso piorar para depois melhorar, estava de facto a cumprir-se. Eu sentia-me cada vez pior. A monitorização do meu ritmo cardíaco mostrava batimentos desordenados, por vezes tropeçava, caía e em dois ou três batimentos quase simultâneos, recuperava. O coração corria, e dava trambulhões... As complicações apareciam, mas íam-se resolvendo. Estava atento às notícias, com uma postura algo seráfica... Acidente junto ao Estádio Nacional com três mortos, acidente na nacional núnero tantos, dois feridos graves. Algo me dizia que a solução do meu problema estaria ligado a estas situações que se passavam um pouco por todo o lado, acentuadas no Natal. Segundo ouvira dizer o que importava não eram os mortos, pois destes que sucumbiam nas estradas não era possível aproveitar o coração que morria. Os feridos graves, que vinha a falecer no Hospital, sim, pois nesse caso era possivel controlar a morte cerebral, mantendo o coração vivo e em condições de ser doado. As condições climatéricas tinham sido severas nesse ano, a agravavam-se, tornando a situação nas nossas estradas mais perigosa, e os riscos maiores. Estranho, eu não desejava intimamente que ninguém morresse ou ficasse ferido, mas de qualquer forma sabemos que alguém vai ter de ficar ferido e morrer nas estradas, a julgar pelo histórico do tráfego. É uma fatalidade da qual eu poderei tirar partido. É estranho, é assim que as coisas são por mais que eu não quisesse. Claramente, a minha solução passava por ali.

Chegou a semana do Natal e a ansiedade aumentava. Algo poderia acontecer. Recordo-me que tinha estabelecido três objectivos, e o um deles era ter o transplante feito com sucesso até final do ano. Faltava pouco. Os dias iam decorrendo sem que os pudesse parar, sem esperas, todos os  dias contavam, todos tinham o mesmo valor. Chega-se a véspera de Natal, a consoada com as minhas filhas, e a consoada solitária da MA e  nada acontece. A mesa de cabeceira serviu de mesa de consoada, o bacalhau não faltou, trazido pelas filhas bem como o bolo rei.

Durante o dia olhava para a porta e para o relógio que a encimava, e a notícia que esperava jamais entrava por ela. Pensei que talvez o momento fosse o Ano Novo. Afinal o meu "objectivo" não seria verdadeiramente um objectivo mas sim um desejo. O dia de Natal passou-se, a MA veio ao almoço, ficou para a tarde, e também para o dia seguinte, 26 de dezembro. Suavizou-se alguma da ansiedade. Nesse dia a MA almoçou comigo e partiu para regressar a casa no autocarro das 15h15. Deixou-me por volta das duas horas, quando terminava a visita,  saiu. Passado algum tempo pela porta para onde a esperança estava sempre virada, entra o Dr RS e diz-me de forma calma, quase a medo, "há uma possibilidade de termos orgão disponível, mas ainda há testes a fazer, para saber da compatibilidade". A partir dagora não comia mais nada, e os enfermeiros ocupar-se-iam da preparação para a cirurgia. "Quando houver noticias definitivas eu informo, talvez no final da tarde já se saiba, entretanto convém estar preparado".

Era assim que no inicio me tinha sido dito que tudo se passaria.Seria feito um anúncio, mas este poderia ser um "falso alarme", tinha no entanto de me preparar como se fosse real. Se, após os testes, entre o sangue que já me tinha sido retirado para o efeito, e o do dador, ainda antes de ser recolhido o orgão para transplante, poderia ser clarificada a possibilidade da cirurgia.

Agora tinha pela frente três ou quatro horas de espera, que poderia terminar com uma de duas respostas: sim ou não ! Se fosse sim subiria para a cirurgia, se fosse não teria de esperar nova oportunidade.
De imediato começou a preparação. Não tive sequer tempo para pensar. Foi retirado mais sangue, e de seguida fui tomar banho completo, com um produto desinfectante. Retiram as pilosidades na região a operar, fiz  necessidades fisiológicas, com a ajuda de um clister. Fui pesado e tinha 60 kg, teria assim perdido 23 kg desde o inicio da "crise", em cerca de 6 meses. Fui vestido apenas com uma túnica verde, muito leve, em teflon, e colocaram-me um barrete na cabeça, do mesmo produto, e estava totalmente preparado para passar a tarde, até vir a resposta definitiva.

Não me sentia mais ansioso, receoso ou com medo. Acreditava na cirurgia e no seu sucesso. Apareceu a anestesista para que assinasse uns papéis e responder a algumas perguntas. Autorizar a operação, a anestesia, transfusão. Surgiu também um médico, com um grande capote pelas costas e barba por fazer para trocar algumas impressões comigo. Percebi que ía fazer parte da equipa que ía realizar a operação, se houvesse operação. Era domingo, provavelmente estaria em casa, à lareira, estava frio, e tinha sido chamado.
Em menos de uma hora tudo foi tratado, e agora era esperar. Os enfermeiros, auxiliares e médicos de serviço vinham despedir-se e desejar sorte. Era também uma grande alegria para eles terem sido capazes de me manter vivo, e terem-mea feito chegar a este dia. Torciam por mim. Estvamos a ter o retorno da esperança. Por mim deitei-me e procurei dormir de cabeça tapada, ouvi música, e esperei.

Já tinha feito os telefonemas necessários, e só esses, três ou quatro pessoas próximas, e coloquei um post no meu blog a dizer aos vindouros que por lá passassem que se deixasse de aparecer, era porque tinha sido operado e corria bem, e só dentro de algum tempo iria reaparecer. As minhas filhas vieram para arrumar as minhas coisas e levar todo o material que tinha sido usado para me ocupar a cabeça.  O livros,  a TV, computador, iPod, telemóvel, roupa, bolachas, cadernos, medicamentos, sapatos, tudo ficou arrumado para sair (ou não). de uma forma ou de outra poderia já não regressar àquele local, embora arriscasse manter.me por ali. Por isso esperaram até que a noticia chegasse de forma definitiva. E não demorou.

Pelas seis da tarde um outro médico da própria unidade chegou junto de mim e informou-me que o Dr RS tinha telefonado, não viria pessoalmente, para me dizer que a resposta era positiva., pelo que a cirurgia ía avançar, e muito em breve ía ser transferido para o bloco operatório.

O sentimento foi de um grande alívio, a excitação aumentou, jamais senti medo de que algo não corresse bem. Era como se tivesse sido fechado numa cerca durante meses e de repente uma porta se abria, teria de percorrer um caminho, mas mesmo que estivesse rodeado de leões eu correria por ele sem hesitar, pois não havia outra saída e a cerca onde estava fechado já ruía um pouco por todo o lado.

Finalmente a espera terminara e o momento das decisões chegara. Ía mesmo receber um novo orgão, vital para sobreviver. Vinha de S. Maria, foi a única informação que obtive.  Passados poucos minutos os auxiliares removeram a cama saí pela porta por onde a notícia tinha entrado, era a porta da esperança, que me tinha alimentado o sonho durante muitos meses. No corredores enfermeiros, auxiliares, e até as funcionárias da ICA ( que me serviam as refeições e me chamavam de "pisco", pelo pouco que comia ), vieram ver a minha saída e desejar sorte. Foram os meus 15 minutos de fama... As minhas filhas acompanharam até à porta do bloco operatório, situado no 3º andar. Para lá subi no elevador, e fui reebido pelo pessoal que se ía ocupar da cirurgia. Mudei para uma maca mais adequada ao acto, alguém falava, faziam-me algumas perguntas, respondia a quem podia, entrou a anestesista, a mesma que tinha visto horas antes, nessa tarde, e que agora me picou no braço, até que em segundos tudo desapareceu. Um apagão geral.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Espera


espera |é|
s. f.

1. Ato de esperar.
2. Ponto onde se espera.
3. Emboscada.
4. Prazo marcado (como concessão ao cumprimento de uma obrigação).
5. Saliência em parede lateral ou em peça de madeira onde .há de travar a parede ou a peça que se .projeta acrescentar-lhes.
6. Peça na extremidade do banco de carpinteiro para segurar a madeira que se aplaina.
7. Peça do torno, entre os cabeçotes, para sustentar a ferramenta.
8. Antiga pequena peça de artilharia.
9. Pequena vara que se deixa em sítio anterior à vara de poda para obstar ao alongamento das vides.



Esperar nestas circunstâncias não é linear. Temos diversos níveis de espera. A minha situação sendo urgente, pois estava dependente de medicação para viver, poderia ser interrompida no caso de alguma situação ocorrer que tornasse o transplante impossivel, é o caso de uma infeção em que o agente infecioso tem de ser combatido em primeiro lugar; só depois se avança.

A minha espera foi interrompida e fui retirado da lista de espera durante cerca de três semanas devido a uma bactéria que penetrou através de um cateter colocada na virilha, na artéria femoral..Foi uma situação desesperante, pois neste contexto a espera não é util, e no caso de haver orgão disponível, o que não cheguei a saber, este será destinado, como é normal, a outra pessoa em igual situação.

Esta é uma das mais vulgares "intercorrências" pois o meio hospitalar é "rico" em agentes que nos contaminam, bactérias, virus, muitos resistentes aos antibióticos. No meu caso o desespero ía tomando conta, pois a infeção era resistente, a febre não baixava de forma efectiva e estava cada vez mais débil, subalimentado, pois quase deixara de comer, e com pouca capacidade de reagir. Tudo me puxava para baixo, e o ânimo só podia voltar no momento em que fosse de novo integrado na lista de espera, o que apenas sucederia de novo na segunda semana de Dezembro, depois de cerca de três semanas fora da lista.

Para além desta situação, talvez a mais longa, outras ocorreram, como por exemplo, episódios de arritmia com perda de consciência (sucedeu duas vezes). A espera prolongava-se e nada me dizia qual a rapidez com que tudo se passaria.

Naturalmente nenhum anúncio prévio era dado que não fosse no dia exacto em que o orgão estivesse disponível, para não alimentar falsas ilusões, o que é normal para não ter decepções maiores do que o normal. A vida de quem espera é assim, desespera. No entanto, sem o saber, o momento ía-se aproximandoe tudo o resto não importava mais desde que lá conseguisse chegar. E isso era o que me assustava, que me provocava pânico, o pânico de acordar todos os dias e saber que "ainda"estava naquele local, à espera, à espera, à espera. Felizmente o túnel mantinha uma pequena luz acesa lá no fundo.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Prévio


prévio
(latim praevius, -a, -um, que precede, que guia)
adj.
1. Feito ou dito com antecipação, antes de outra coisa. = ANTERIOR, PRECEDENTEPOSTERIOR, SEGUINTE, ULTERIOR
2. Que deve preceder. = INICIAL, INTRODUTÓRIO, PREAMBULAR, PRELIMINAR, PREPARATIVO, PREPARATÓRIOFINAL
 
Entrei numa fase em que já sabia que não sobreviveria sem o transplante, acho que sempre o soube, mas ainda não sabia se o iria fazer. Teria de fazer um conjunto de exames prévios que detectariam ou não algumas situações incompatíveis com a realização do transplante, ou implicando a necessidade de algumas terapias complementares. Assim, para além da clonoscopia e endoscopia já feitas, muitas análises, hemoculturas, exames urológicos, dentários, TAC, raio X, alguns feitos no Hospital de  S. José, onde me deslocava ( onde me levavam !!!).

Após entrar para os cuidados intermédios, vindo de Beja, onde iria permanecer, deixaram-me na sala maior, onde o movimento era intenso, de dia e de noite, o que me causava grande  incómodo. Manifestamente era um local impróprio para quem iria "viver" ali meses. Assim acabaram por me arranjar um cantinho, discreto junto a uns armários de arrumos, mas onde eu geria melhor o meu espaço, a luz, o ruído. Nesta "sala" havia apenas dois doentes, enquanto na anterior havia oito. Assim estava protegido do exterior, mais afastado da confusão. Devo isso em boa parte à enfermeira Célia, que mal vagou o local, reuniu forças para colocar lá a minha cama.

Às tantas, uma das análises, PSA e PSA livre, ligadas ao controlo da próstata deu valores inadequados, e tiveram de tirar tudo a limpo. Enquanto tal não fosse esclarecido, nada feito, não tinha luz verde, e não entrava na lista de espera para transplante. Para isso tive de fazer uma biópsia próstática, para confirmar ausência de neoplasia, o que felizmente se confirmou. Após tudo concluído, analisado, tratado, foi-me finalmente anunciado que entrara na lista de espera. Tinha-se passado um mês sobre o meu internamento em S.Marta e estávamos a 28 de Outubro. Agora era esperar que o orgão compatível aparecesse, e eu estivesse em condições do receber, o que implicava que outras "intercorrências" não ocorressem. Nesse caso seria de novo retirado da lista até se reunirem de novo condições.

Entretanto o meu "novo" coração ainda batia no peito de alguém, que desconhecia que iria ser "ceifado", e isso era o que me permitiria sobreviver. Irónico, não ?

O outono entrara com muito frio e chuva intensa, e ali estava protegido. Todos os dias me degradava um pouco, todos os dias havia algo que não corria bem, mas sobrevivia contra o tempo, mantinha-me à tona, embora os sinais de monitor fossem cada vez mais confusos, mais desordenados, dando indicação de um coração descompassado, um ritmo incerto e imprevisível, preparado para me fazer passar momentos de grande pânico e muitas vezes o medo instalava-se.

Na cama do lado pessoas entravam e saiam, um desfile de patologias cardíacas, pessoas resignadas, outras indignadas, fumadores, bebedores, gordos e magros, agricultores e juizes, gente cujo ponto comum era terem o coração afectado por algo que as perturbava. Nada feito, dezenas de doentes iam e vinham e eu ficava, ficava sempre à espera de outros dias melhores. Apenas o Dr RS por vezes aparecia para me dizer "Por enquanto nada!!"  Entretanto outros médicos ocupavam-se de mim, analisavam a evolução, colocavam e retiravam cateteres, medicavam nas crises. A palavra certa era esperar, esperar o meu momento.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Setembro


setembro
s. m.
Nono mês do ano.
O mês de Setembro 2010 entrou com pouca esperança. A situação degradou-se e tudo levava a crer que uma solução teria de aparecer, ou seria o fim. Saiu na altura um estudo acerca de um medicamento que prolongava um pouco a vida de uma pessoa com insuficiência cardíaca, para além da média de "sobrevida" de cerca de quatro anos. Desta notícia para mim a única coisa que interessava eram os "quatro anos" em média. Estava de facto a encaminhar-me para eles. O primeiro enfarte, em Setembro de 2006, estávamos agora em Setembro de 2010. Estava na média e de facto a situação não parava de piorar, em todos os sentidos, seja no estado cardíaco, quer no restante. O estado anímico também não estava muito confiante. Tinha falado com o Dr RS que referia que, dado estar marcada a tal "ablação", esperaríamos por ela. Por outro lado a gastrite também era uma contra indicação para o transplante, e portanto para já nada seria indicado prever, esperando que a gastrite pudesse melhorar.
O estado anímico deteorava-se, e voltei a consultar a Drª MJ. Parecia-nos que algo devia ser feito, e se era para fazer, então que se avançasse o mais rápido possível, pois caso a solução fosse o transplante, ainda algum tempo haveria de passar até que este se pudesse concretizar.  Assim haveria de ser o mais oportuno para que o tempo da tomada de decisão não se esgotasse. Neste caso tinha muita confiança na Drª MJ e nas suas decisões, em geral atempadas e sempre de muito bom senso. E mais uma vez esse meu sentimento mostrou-se acertado.
Nova consulta e a Drª MJ achou melhor que eu fosse internado de novo, para que pudesse avaliar se havia alteração na função cardíaca, até aqui pouco sensível, e no caso de haver essa degradação, avançar para o Dr RS de S. Marta. Sei que só mesmo pela mão dela tal poderia ser concretizado. Assim a expectativa era grande, tanta quanto a ansiedade.
E assim foi. Internado no dia 21 de Setembro 2010, iniciava-se o Outono e os primeiros exames, revelavam o que se esperava. Uma drástica redução da função cardíaca, para valores incompatíveis com uma vida normal. O esforço que podia fazer era pouco, e para que as funções vitais permanecessem activas seria necessário uma droga estimulante cardíaca, a dobutamina, que começou de imediato a ser ministrada por perfusão, isto é, uma máquina injectava em permanência a droga numa dose pré definida, através dum cateter. Tal manter-se-ía nos próximos meses, até ao transplante. A reacção do coração à droga era notória, com aumento da frequência cardíaca e da tensão. Qualquer variação na perfusão da droga causava sintomas próximos da arritmia, com palpitações.
Entretanto, a Drª MJ, informou-me que já tinha falado com o Dr RS, que em breve seria transferido para S.Marta, e que lá faria mais exames preparatórios para o transplante. A droga que tomava também tinha sido prescrita em concordância com o Dr RS, e ela me acompanharia em dosagem variável até ao transplante. O dia em que esta conversa decorreu foi talvez o mais dificil de viver, um dos mais complicados da minha vida.
Durante algum tempo, tinha vivido com esta perspectiva no horizonte. Tinha interiorizado, imaginado, antevisto esta situação, mas sempre hipotética, era um cenário, a partir de hoje era uma realidade. Sem o transplante não iria sobreviver. E ainda não sabia se reunia todas as condições para o fazer. Nesse dia estive muito tristee à noite, chorei muito e foi a enfermeira Márcia quem me ouviu. Deu-me palavras de esperança, para mim era o longo caminho que me assustava, pois eu precisava de uma solução, mas já, mas a solução apresentava-se num futuro incerto e totalmente imprevisível. Nada faria prever que poderia sobreviver até lá. Poderia não sobreviver, bastava uma arritmia, uma actuação do CDI que não revertesse a situação, muita coisa ainda se poderia passar. Não sabia ainda como lidar com esta situação, sabia que a partir daquele momento já só sairia do hospital de uma de duas maneiras, ou vivo com um coração transplantado, ou morto, direitinho para um local a determinar.
Não ía de imediato para S.Marta porque o Dr RS me queria nos cuidados intermédios, e não havia ainda vaga, os cuidados intermédios que já conhecia de cor.
Num dos dias do internamento anunciaram-me que amanhã ( 29 de Setembro) se daria a transferência para S. Marta. Assim foi, no dia aprazado depois de almoço, numa ambulância, comigo a enfermeira Leonor, no momento da saída do Hospital de Beja, o pessoal médico, enfermeiros, auxiliares vieram desejar-me sorte, despedir-se de mim, e dizer que me queriam vivo. Foi com esse espirito que entrei na ambulância que me conduziu a Lisboa. Sabia bem o que poderia esperar, e agora, uma brisa de esperança invadia-me, ía para um local conhecido, ía começar uma nova fase. definitiva, no meu tratamento; depois de quatro anos este meu coração seria retirado e substituido por outro, que, naquele preciso momento ainda batia no peito de alguém, que vivia tranquilo, sem prever que nos próximos meses iria morrer, e a sua morte poderia dar-me uma vida nova, a alguém que agora lutava por ela, e estava próximo da perder.
Estranho mistério o da vida nos tempos que correm. Ainda bem que não somos capazes de prever o futuro !!!

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Transição


transição |z|
(latim transitio, -onis)
1. .Ato ou efeito de transitar.
2. Passagem de um lugar, assunto, tom ou estado para outro.
3. .Trajeto.
 
 
O mês de Agosto 2010 iniciou muito quente, como é normal aqui no Alentejo. A crise não tinha passado, antes pelo contrário. Por vezes o CDI disparava, e agora, desde a última consulta de arritmologia, tudo se tinha alterado. Antes eu perdia a consciência primeiro e tudo se passava depois, pelo que não me apercebia sequer do disparo do aparelho. Agora, devido aos ajustes feitos tudo era diferente. Eu sentia o disparo, isto é, o choque eléctrico no peito, e não chegava sequer a desmaiar, como sucedia até aqui. Aquele tempo de espera introduzido, permitia a actuação do aparelho antes de haver perda de consciência. Para mim era ainda pior, pois acompanhava a evolução da arritmia e esperava o choque a qualquer momento. Outros problemas começavam a fazer-se sentir, gástricos, diabetes, tinha dificuldade em comer, dores de estômago e muito má disposição.
Assim achou-se que deveria voltar a Beja, já não para a cardiologia, mas para a medicina interna. Na realidade, para além de diagnosticar o que se passava comigo, estava -se também já a preparar o transplante, sem mo dizer expressamente, pois alguns dos exames feitos, já serviram, pois eram obrigatórios para a decisão de transplantar.
Então na primeira quinzena de Agosto, novo internamento em medicina interna e alguns exames pouco simpáticos para fazer. Clonoscopia, endoscopia, TAC, análises a tudo e mais alguma coisa, raio X. De tudo se concluiu que havia uma gastrite, que não justificava nenhuma intervenção para além do uso do "meu querido prazol". Estive assim numa enfermaria com seis camas, no Hospital de Beja, metade eram idosos. alimentados por sondas, inertes e a aguardar vagas nos centros de cuidados continuados.
Ali estava eu, visualizando um futuro tão incerto, no meio de tantos doentes, alguns apenas sobreviviam à custa de equipamentos que os alimentavam, que os faziam respirar, fraldas que retinham os excrementos, tudo muito triste, sem sentido, o prolongamento da vida para além daquilo que era normal e aceitável. E eu estava também a prolongar uma vida que já não tinha razão de ser, para além dos prognósticos mais optimistas. Só um milagre poderia salvar-me, mas o caminho para o milagre parecia longo e pedregoso, era tal que nem apetecia começar...
Por outro lado agora estava no lado sujo da medicina, a interna, já não estava no "clean room" da cardiologia, onde se morre sem se ver sangue, excrementos ou ranho, aqui todos eram "feios, porcos e maus", e eu lá estava , mais um !!! Estava em transição, mas para onde ?
Os exames feitos, embora tidos por desagradáveis, quer a sua preparação, quer na execução acabaram sendo feitos e os resultados afinal não apontavam nada de grave. A clonoscopia detectou um pólipo pequenino, imediatamente retirado, a endoscopia detectou uma ligeira gastrite e pouco mais. Acabei tendo alta, voltar para casa sem medicação especial, afinal era no coração que estava a origem de tudo, a falta de débito sanguíneo tudo arrasava, e os exames sobretudo serviram para testes pré-transplante, de forma que quando chegasse a hora muita coisa estava adiantada. Isto devo à Drª MJ.
Final de Agosto estava em casa, mas cada vez mais débil.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Seguinte


seguinte
1. Que vem depois.

2. O que se vai dizer, fazer ou ver.
3. O que vem após outro.

Após ultrapassada esta crise pontual pensei que me seriam dadas tréguas e que tudo entraria na rotina. No entanto os sinais não íam nesse sentido. As arritmías tornaram-se frequentes e cada vez mais sensíveis. O meu medidor de tensão apanhava esses aumentos das pulsações e o pânico tomava conta de mim. Entretanto tinha chegado o dia da consulta de arritmologia em S.Marta, a qual foi antecipada dado que estas  "crises" eram detectadas pelo meu "cusco", o aparelho de telemetria, e transmitidas a S.Marta.
Houve então lugar a uma correcção de parâmetros do meu CDI, de forma a ampliar o período de "espera" até ao disparo do CDI, de forma a prever situações em que esse disparo se poderia revelar extemporâneo. Assim agora  era dado mais tempo para que o  organismo, por si mesmo, e com a actuação do CDI, procurasse corrigir a actividade arritmica. Por outro lado o médico achou por bem referenciar-me para uma operação chamada de "ablação", na qual a zona do coração origem da "arritmia" é "queimada", num processo por tentativas. Seria uma intervenção muito longa, algumas horas, sendo introduzida uma sonda que vai testando várias zonas do ventriculo, procurado "provocar" a arritmia, até detectar essa zona  que é  queimada evitando posteriores arritmias com essa origem. Segundo o médico o meu risco actual era que, devido à insuficiência cardíaca que se agravava, corria-se o risco de o CDI ao actuar, o coração já não ter capacidade de responder ao estímulo, e a reanimação acabasse por não se dar. Assim a ablação ficou desde logo (inicio de Setembro 2010) agendada para Novembro. Entretanto continuava a ser acompanhado pela Drª MJ. Vários disparos do CDI ocorreram, havendo um dia  em que o CDI disparou três vezes, deixando-me meio "zonzo".
Para um melhor controloda situação, a Drª MJ achou bem que fosse de novo   internado no Hospital de Beja, onde entrei em inicio de Julho 2010. Procurava de novo o controlo por meio da medicação, no entanto tal revelava-se cada vez mais dificil. Já no Hospital outros disparos ocorreram, e o teste com alteração dos medicamentos poucos resultados apresentava de forma duradoura.
Estive três semanas internado, a Drª MJ foi de férias e regressou comigo ainda internado, tendo ficada o entregue ao seu marido Dr LD, também cardiologista no Hospital. Nada resultava, controlava-se os batimentos cardíacos, mas a tensão descontrolava-se, e era dificil de equilibrar os parâmetros que mutuamente se inflenciavam. Resultados poucos... O modelo esgotava-se, e outros sintomas, entre eles gástricos e havia dificuldade em os controlar.
Acabei por ter alta e regressei a casa. Estavamos em final de Julho 2010, as férias nas termas, em Agosto, foram anuladas e regressei muito debilitado e com sinais de que as coisas não iriam ficar assim e estava a situação a agravar-se. Em casa, onde só pontualmente usava oxigénio, passei a usar todos os dias, não adormecia  sem ele, não suportava o calor que me estrangulava, pelo que decidimos instalar ar condicionado em casa, mas que pouca eficácia teve, pois em breve passaria a nova etapa.