sábado, 31 de março de 2012

Evidências



evidência
(latim evidentia, -ae, evidência, visibilidade, clareza)
s.f.
1. Qualidade de evidente; certeza manifesta.
em evidênciaexposto à vista de todos.
pôr-se em evidênciasalientar-se; chamar a atenção geral.

Após anos dos primeiros sinais, nada indicava estes se tornassem em evidências claras. Mas aconteceu.
O meu hábito de andar de bicicleta, coisa que sempre adorei, foi interrompido durante uns anos, devido a terem sido roubadas as bicicletas que utilizava.
Em 2006, perante o meu permanente queixume, em meados de Agosto 2006  a minha esposa decidiu fazer-me a oferta de uma bicicleta. Uma Giant, de montanha, com muitas mudanças, já boazinha, e algum equipamento para utilizar, e comecei a tirar partido. Certo que há 5 ou 6 anos não andava, sendo que comecei devagar e pouco a pouco fui ganhando forma. Fazia 10 ou 15 quilómetros por dia, sem qualquer sintoma de cansaço. Quando íamos tomar o pequeno almoço fora, a MA ía de carro, e eu de bicicleta, partindo com algum tempo de avanço, aproveitava para fazer 20 ou 25 quilómetros, em estrada. No entanto a terra chamava-me e gostava de experimentar, agora que já tinha algum "endurance", o todo terreno. Foi por isso que decidi inscrever-me numa maratona em Penedo Gordo, aqui no Alentejo, que tinha vários trajectos alternativos, uns mais curtos e fáceis, outros mais longos, mediante a capacidade de cada um. Optei pelo mais curto, de 30 quilómetros, coisa que faria com facilidade.
No dia aprazado, 16 de Setembro de 2006, lá me dirigi equipado a rigor, e eram 8 horas já lá estava, pois o "passeio" começava pelas 9 horas. Eram próximo de 600 ou 700 participantes, e havia de tudo, desde os "marados da tola", aos quadros de empresa, aos entrados na idade, e que aproveitavam o passeio pelos deslumbrantes campos do Alentejo.
A partida deu-se sem atrasos e lá fomos percorrendo os campos, afastando-me como podia da marabunta, para ter o meu espaço, e seguir no meu trilho e ao meu ritmo. Estava a sentir o prazer de há 10 ou 15 anos, quando andava muito, nos primórdios da BTT, com os meus colegas da empresa, e o ar da manhã enchia-me de felicidade.
Os primeiros sinais de falta de força surgem quando comecei a ter de transportar à mão a minha bicicleta, em algumas subidas enlameadas, pois já tinha chovido nesse ano. Montava, desmontava, e entretanto a maioria já tinha passado, o que para mim não tinha qualquer problema.
Fiquei assim acompanhado por aqueles que de facto aproveitavam o passeio. No entanto os sinais de cansaço íam e vinham, talvez devido a ainda não me encontrar na devida forma, dado que a compra da nova bicicleta tinha um mês; é verdade que há cerca de dois anos andava no ginásio em Silves, onde íamos duas vezes por semana, mas a forma ainda não tinha voltado.
Ataquei então uma subida, num estradão que passava junto a um monte, ali para os lados da aldeia da Trindade; os cães ladravam à passagem dos ciclistas, estava visto que por aqueles lados pouco mais havia que alguns idosos isolados, agricultores, uns porquitos, cães, gatos, patos e galinhas.
Comecei então a sentir um enorme cansaço que me tirava a força.
A respiração tornou-se difícil, ofegante, o peso no peito era enorme, e uma mão parecia apertar-me o pescoço, tentando estrangular-me. Continuei a pedalar, pensei, falta de treino, mas o peso permanecia, a respiração era ofegante. Várias vezes parei, levei a bicicleta à mão, mas retomava, acreditava que estava melhor agora, bebia uns golos de água, retomava, parava, montava, mas as pernas começavam a retomar a carga. Teria mesmo de descansar.
Parei ! coloquei a bicicleta no chão e estendi-me debaixo de um chaparro. Eram cerca de onze horas. Estendi-me na terra, mas o peso no peito, a mão na garganta, a respiração ofegante eram agora permanentes. Já não tinha a ver com o esforço e não passava, mesmo em repouso.
Tentei comer uma barra de cereais, pensando "é fraqueza", mas os maxilares já não tinham força para trincar a barra, que era dura. Tentei parti-la à mão, mas era difícil. Alguns ciclistas passavam e perguntavam "Tudo bem ? ", estava tudo mal, embora eu repondesse "Tudo bem !!!". À pergunta "Precisa de ajuda ?" eu respondia "Não !!!" estava tudo bem mal. Vi o telemóvel para tenter contactar a MA ou alguém, mas a rede, naquele local, nem vê-la. Assim me mantive cerca de meia hora, e entretanto parecia que aos poucos recuperava o fõlego. Decidi levantar-me e tentar, mas as pernas recusaram os pedais. Levei a bicicleta à mão mais alguns metros, para um local mais próximo da passagem de ciclistas.
Estava junto de um ponto onde o percurso mais longo e o mais curto se entrecruzavam, para um percurso comum. Voltei a deitar-me debaixo de outro chaparro. Entretanto já passara o meio dia, o sol aquecia um pouco, mas os sintomas eram os mesmos.
Na realizade não tinha dores, mas sim opressão no peito, garganta apertada, como se alguém me quisesse cortar o ar, e a respiração, longe de se fazer de forma natural, fazia-se com muito esforço, e a falta de ar era agora permanente e incapacitante.
Jamais a palavra "enfarte" me passou pela cabeça, no entanto era aquilo que se estava a passar, vim a saber, embora só alguns meses mais tarde.
Percorri ainda um caminho pedregoso, onde a bicicleta tinha de ser levada à mão, com bastante esforço. Vi um jeep da organização, ao longe, parado, que não podia ultrapassar essa zona pedregosa, que tinha de ser feita pelos meus próprios meios. Já estava nesta prostração há mais de uma hora, e algo devia fazer. Agora à pergunta "Precisa de ajuda ?" respondi finalmente "Sim !!!"
Então alguns ciclistas pararam, e levaram a bicicleta e o meu material com eles, e ajudaram-me a fazer o caminho a pé. Ao chegar junto do jeep, subi, já lá se encontravam dois ou três que não se tinham aguentado das pernas, e eu era mais um. A bicicleta era transportada na outra carrinha de caixa aberta. Pareceu-me que me sentia pouco a pouco , mais bem disposto. O jeep, lá partiu, e retornava pela Tindade até à estrada nacional e daí até ao Penedo Gordo. onde chegámos já muito para além da uma da tarde. Muitos ciclistas, quer do percurso longo como do curto, já tinham chegado, mas muitos continuavam a chegar.
Desci do jeep algo combalido, e a minha bicicleta lá estava, triste, aguardando.
Um bombeiro perguntou "Quer que o leve ao Hospital ?" e eu  disse "Não, já estou melhor !". Sentia-me de facto melhor, mas não estava melhor, e o meu estado recomendadva sim, uma ida ao hospital. Não quis ir. Tudo se resolveria, pensei.
Com alguma dificuldade coloquei a bicicleta no carro, o que implicou desmontá-la, com dificuldade, e regressei a casa.
Sentia-me melhor, embora o essencial dos sintomas se mantivessem. No entanto lá fui a conduzir os cerca de 50 quilómetros que me separavam de casa. E comigo ía o enfarte em suspenso. Telefonei à MA, minimizando sempre aquilo que se teria passado. Tinha fome, comi qualquer coisa, mas os maxilares recusavam o seu papel.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Sinais

sinal
(latim tardio *signalis, -e, que serve de sinal, de signum, -i, sinal)
.s. m.
1. Coisa que chama outra à memória, que a recorda, que a faz lembrar.

2. Indício, vestígio, rastro, traço.

Quando procuro sinais do que veio a acontecer encontro muito pouco na memória. Ou tudo se esvaziou, ou nada afinal aconteceu. A primeira vez que a palavra "arritmia" surge no meu vocabulário foi em 1996. Exames de rotina realizados na empresa onde trabalhava, análises, electrocardigrama e uma consulta com o médico do trabalho. Riscos num papel milimétrico, aparentemente iguais a outros que já tinha feito, o "senhor doutor", habitualmente bem disposto, disse "Ó engenheiro tem aqui umas arritmias mas nada de preocupante..."  Eu próprio desconhecia o que aquilo queria dizer, pois para mim todo o gráfico para onde olhava como "boi para palácio", me parecia uma grande arritmia... Hoje já sei, estive mais perto da morte devido a elas, essas "bexigosas", e a outras coisas parecidas.
Sei agora que, quando o ritmo cardíaco é inadequadamente rápido ou muito lento, estamos perante arritmias, e que estas podem ser fatais.
Regressei ao meu trabalho, pronto para esquecer tudo aquilo que me tinha sido dito, e retomar uma vida normal, a palavra arritmia tinha já sido esquecida, se é que alguma vez ocupou algum espaço no meu dicionário pessoal.
Também não havia razão para fazer parte dele. Na altura tinha 45 anos, algum peso a mais, pouca actividade física regular, sedentarismo, algum stress, e uma vida de homem viúvo, duas filhas a cargo, algumas relações afectivas pontuais, que não estáveis. Não fumava, não bebia em excesso, e não cometia aqueles excessos que podem arrasar o coração aparelhado para a vida que nos foi dado viver. Nada de anormal então. Vida profissional estável e com algum desafogo, casa em Lisboa e Azeitão, computador e internet nos seus primórdios, tudo para viver mais 45 anos despreocupado e desaparecer no momento certo, quando todos os outros também desaparecem. As ondas de turbulência do ano de 1992 já estavam ultrapassadas.
Voltei a ouvir falar da palavra "arrítmia" mais uma vez, antes de a escutar de uma forma mais dramática.
Em 1998, comprei casa em Lisboa, para deixar uma casa alugada. No processo de compra foi-me proposto um seguro de vida associado ao crédito que na altura  procurava obter. De novo exames médicos. Doenças anteriores, historial clínico, nada de especial. Gripes, ouvidos e era tudo. Afinal tinha sido uma pessoa saudável, apesar da aproximação aos 50 anos.
Desses exames fazia parte um electrocerdiograma, o primeiro feito desda a visita ao médico do trabalho. Aí surgiram de novo as arritmías, e esta palavra foi de novo recuperada do baú da minha memória. Mas afinal qual o problema, apenas uns pequenos batimentos a mais ou a menos, seria razão para se recusar um seguro de vida ? Quereria isto dizer que a probabilidade de chegar ao final do contrato de crédito, vivo e saudável, era menor que dos outros "viventes"?
Agora, para continuar o processo exigiam uma prova de esforço, que prontamente fiz e enviei à seguradora. Esta tinha-me pedido dias antes essa prova de esforço, afirmando com todas as letras que "nenhum compromisso de seguro seria assumido, sem haver  por parte desta seguradora uma aceitação explícita". Ameaçador...
Estaria eu em risco? Afinal a vida saudável, 47 anos de boa alimentação, conforto, cuidado em manter a mente sã e corpo são, não serviriam para nada ?
A "aceitação explícita" nunca veio, mas vi, pelo desconto do valor da apólice na conta bancária, algum tempo depois, que o seguro fora feito. Mistério...
Pelos vistos o risco não era grande. O valor do empréstimo era pequeno, e mesmo que tivesse de ser pago antecipadamente "por morte do tomador do seguro", aquilo que iriam pagar justificava o seguro.
Fiquei mais decansado !!
Havia alguém que apostava que nos próximos 25 anos me manteria vivo. Apostava contra o destino. Esse reconhecimento custava-me nove euros por mês, nem era caro. E era reconfortante...
Estes foram os primeiros SINAIS, não valorizando uma "dor de burro" que não se sabe se é barriga, peito, estômago ou fígado, baço ou pâncreas, que algumas vezes sentia.
De electrocardiogramas, arritmias, e outras "chinesices" jamais ouvi falar até 2006, isto é durante mais de 8 anos.

Entretanto a vida mudou. A estabilidade deu origem à incerteza, a fuga para a frente, a falência, a reconstrução da vida, foi mais um passo. As filhas cresceram, casei de novo, regressei a Setúbal e nem soube mais das tais arritmias. O coração parecia forte e parecia certo que a seguradora tinha feito um bom negócio comigo. Por um triz não se tornou num mau negócio para ela e para mim.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Prefácio

No dia 26 de Dezembro de 2010 fiz transplante cardíaco no Hospital de S. Marta em Lisboa. Aguardei cerca de 3 meses por orgão compatível. Nessa altura escrevia pequenos post no blog "Sul e Sueste" que já existia, lia, escrevia um pequeno diário. Essas notas escritas deram-me a ideia de as aprofundar e originar outro blog, apenas dedicado a essas notas. Uma parte dos posts já estão escritos, e são mais longos do que o normal num blog. Começo, no entanto, por escrever estes textos para mim mesmo, podendo ser lidos por outros. Não tenho qualquer preocupação de rigor científico, tratando-se apenas de um relato na primeira pessoa de situações vividas pelo próprio. O longo internamento, de 21 de Setembro de 2010 a 27 de Janeiro de 2011, e os posteriores internamentos, deram o tempo e a experiência necessária para estes textos. O tempo já passado, cerca de um ano, permitem distanciamento face a factos traumáticos que, por agora, acabaram bem.