quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Agradecimento


agradecimento
s. m.
1. Ato ou efeito de agradecer.
2. Expressão ou facto. que manifesta gratidão.

Mais tarde, após o transplante, a psicóloga do Hospital, a DrªN, falou-me da "necessidade do agradecimento", isto a propósito de uma relação diferente que estaria a estabelecer com a espiritualidade. Essa relação seria assim uma forma de agradecimento a Deus pela "dádiva" de um orgão que me salvara a vida. Não podendo agradecer à pessoa que me "cedeu" o orgão, ao dador de forma benévola, uma pessoa que acabou de perder a sua vida, e perdendo-a me salvou, agradeceria a uma entidade superior, a alguém que tornou tudo isto possível, isto é, alguém que armou a mão do homem com as técnicas adequadas a salvaguardar um coração da morte do seu possuidor, que colocou o corpo num local onde a retirada do coração foi possível, que permitiu o seu transporte e utilização atempada, o que permitiu que vivesse, apesar de tantas vicissitudes, tantas investidas da morte.

Há de facto muito para agradecer, a quem me deu apoio, visitou, me trouxe comida, ânimo e estímulo, e a todos os profissionais que me trataram. Mas ao "agradecer" a Deus estou a agradecer a todos, num acto único, até a mim mesmo por ter tido a coragem e a força que permitiu a sobrevivência.

Assim normal é que me aproxime desse "ser" superior, se tiver fé, ou de alguma entidade, ideia, pessoa, para mostrar esse reconhecimento, vontade de mostrar que valeu a pena o "sacrifício" de um outro ser que perdeu a sua vida, valeu a pena e foi bem aproveitado. Ao agradecer a Deus, ou a outros, estarei a justificar perante mim mesmo a atrocidade que ceifou a vida de outra pessoa desconhecida, a reparar, se é possível, esse dano, e assumir a melhor guarda para o orgão que me foi confiado, sem me pedirem nada em troca. Uma vida por uma vida, obrigado meu Deus pela oportubidade, é o que posso e quero dizer. Claro que a fé implica a crença nessa ideia maior, nesse ser superior, que tudo pode dar e retirar, decidir quem chama a si e quem salva, por um comando do destino sobre cada um de nós. Para além disso há ainda o simples agradecimento"terreno" às pessoas, aquelas que me trouxeram empadas, televisão, "phones", computador, companhia, palavras, livros, afectos, comida, hamburgers, roupa, sapatos, carícias, discussões, comversas, simples presença, amizade ou compreensão, tudo isso tem de ser agradecido, pela atitude, pelo retorno  e pela vontade.

Ao agradecer a Deus, Deus retorna em compreensão o nosso agradecimento, e vela para que seja capaz, esteja à altura de tomar conta o bem precioso que me confiou, dado que outro não teve essa benesse para que eu vivesse. Parece simples, parece evidente, mas nos momentos dificeis que irão surgir, será que sou capaz de manter essa coerência?

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Psicologia


psicologia
s. f.
1. Parte da filosofia que trata da alma e das suas manifestações.
2. Estudo dos fenómenospsíquicos.


Era o primeiro a apontar o dedo e a recusar a importância ou a eficácia do acompanhamento psicológico. Enquanto esperava na UCIC, a enfermeira-chefe decidiu pedir para mim um acompanhamento. Foi assim que conheci a Drª N que ainda hoje, aquando das minhas rotinas a S.Marta, procura acompanhar a evolução.

Dizia eu, há algum tempo, que uma consulta com um psicólogo pode ser substituída por uma conversa com amigos, uma visita de família, ou a leitura de um bom livro. Hoje penso que não é bem assim.

De um primeiro contacto desconfiado, acabou criando-se um clima de confiança. As dúvidas acerca do presente e do futuro da minha situação, como lidar com as suas consequências, a antevisão do que poderia acontecer e como gerir os acontecimentos, lidar com eles, mais do que com o médico assistente, estes assuntos foram tratados com a Drª N. Ela sempre soube colocar as boas perguntas, responder às minhas dúvidas, as que tinham resposta, ou não responder àquelas que a não tinham.

As conversas tornaram-se quase diárias, ou no mínimo duas ou três vezes por semana. Aspectos relacionados com o internamento, com a cirurgia para que estava proposto, com as suas possibilidades de sucesso ou insucesso, a família, os amigos, a doença e as suas implicações, o futuro e a forma de o encarar, as intercorrências e o seu impacto. Um apoio excelente, impecável e quase imperceptível, com uma subtileza e uma inteligência que me surpreendeu, A ajuda foi muito especial. Não é de facto "apenas" uma conversa de amigos ou de família. Apercebemos-nos bem da presença de profissionalismo, que simultâneamente aproxima e mantém uma distância adequada, longe para que não nos sintamos "invadidos", mas não tão longe que nos sintamos apenas "observados".

Antes e depois do transplante a lógica foi sempre a "preparação" de um futuro, esclarecido e sem medos, em que a consciência dos limites do problema estava sempre muito claro, sem dar uma imagem mirífica do que se poderia vir a passar. Bem pelo contrário. Tudo me pareceu mais claro, e sempre fiquei muito mais esclarecido, mais consciente, com uma visão mais clara. A própria MA se socorreu dela uma os duas vezes, e a intervenção foi sempre muito profissional, sem interferências abusivas, pisando sempre um terreno firme, sendo que as certezas e as dúvidas eram claras e passadas para o doente, sem deixar lugar a ambiguidades. A ajuda assim obtida foi inestimável, e muito contribuiu para estabilizar o meu estado de espírito e criar uma força suplementar, esclarecida, para enfrentar a adversidade. Mais consciente, melhor informado, mais forte.

Quando entramos no processo de transplante, nada sabemos dele, ou muito pouco. Os médicos, por razões profissionais, feitio ou falta de tempo, pouco esclarecem, ou fazem-no apenas por monosílabos. Foi a psicóloga quem mais me ensinou acerca dos detalhes do processo. Talvez por olhar para ele da mesma forma do doente, de forma simples, com a maior compreensão, acerca das dúvidas do doente e a capacidade de dar aquelas resposta simples que procuramos. Perguntas, como por exemplo, "como é o isolamento?", "quanto tempo lá estarei?", "vale a pena acreditar na eficácia do transplante?", "o que se come depois de ser transplantado?", "que evolução terá o meu corpo?", "terei uma vida normal?", perguntas a que respondia de forma a que o doente percebesse que também que há coisas que já sabe, pela experiência de outros, outras coisas não sabemos mas suspeitamos. Sem a responsabilidade que teria um médico ao dar as mesmas respostas, a psicóloga ajudou-me a compreender melhor o presente e o futuro, a preparar uma vida equilibrada para além do transplante, para além daquela cama, daquelas enfermarias. Foi uma das coisas boas que me aconteceram naquele hospital. Mudou a minha forma de ver a psicologia, as consultas e o "acompanhamento" proporcionado por estes profissionais.

domingo, 18 de novembro de 2012

Suor


suor |ó|
(latim sudor, -oris)
s. m.

1. Humor aquoso que é segregado.secretado pelas glândulas sudoríparas e destila pelos poros. = TRANSPIRAÇÃO
2. Ato de suar; estado de quem sua. = EXSUDAÇÃO, SUDORESE, TRANSPIRAÇÃO
3. Trabalho grande ou intenso. = FADIGA, ESFORÇO, SACRIFÍCIO
4. Fruto desse trabalho.

Nos tempos da espera por vezes o fisiológico revolta-se contra o psicológico, outras vezes acompanham-se. Não sei de que situação se trata, mas a debilidade do meu coração provocava-me um cansaço extremo. As actividades mais simples, cansavam-me. O coração muitas vezes disparava e batia desordenadamente (podia acompanhar pela curva no monitor pelo alarmes que tocavam, para me irritar, claro...) , sem limite, sem controlo e sobretudo sem ritmo certo.Suava então, como se estivesse em plena corrida ou a andar de bicicleta.

Em plena noite sucedeu várias vezes acordar encharcado em suor. O pijama molhado, o suor a correr pelo rosto, pelas costas, em pleno inverno. Só me restava chamar o enfermeiro ou auxiliar, e pedir para fazerem algo. E vinham sempre, mudavam-me a roupa, trocavam o pijama, despiam e vestiam, por vezes mudavam mesmo os lençóis. Uma das vezes, recordo-me bem, já não havia pijamas disponíveis, tive mesmo de vestir um "baby doll" de senhora, apertado nas costas com botões, verde com florinhas cor de rosa, isto para poder dormir em seco. Sempre se arranjou solução.

Após as refeições, sobretudo depois do jantar, e enquanto decorria a digestão, o coração corria desordenado, carregado pelo trabalho que uma simples digestão lhe dava, e o corpo respondia com suor, muito suor. O calor na pele queimava e o suor procurava contrariar esse aumento de temperatura, também nos momentos piores, durante as infeções que ocorreram, a febre surgia, e lá vinha de novo o suor. Aí sempre chamei por ajuda, embora tivesse consciência do trabalho que ía dar áquelas pessoas, que procuravam proporcionar, dentro dos seus limites, conforto, para além de tratamento. Suor, suor e mais suor. Apenas suor.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Morte



morte
(latim mors, mortis)

s. f.
1..Ato de morrer.
2. O fim da vida.
3. Cessação da vida (animal ou vegetal).
4. Destruição.
5. Causa de ruína.
6. Termo, fim.
7. Homicídio, assassínio.
8. Pena capital.
9. Esqueleto nu ou envolto em mortalha, armado de foice, que simboliza a Morte.

 Esteve sempre presente ao longo dos últimos anos, em particular na última fase, a da espera. Poderia considerar duas fases. Até ao internamento, para aguardar transplante, essa relação foi pontual, e sempre foi a imagem da morte que veio ter comigo e não o contrário. Estou-me a referir aos diversos episódios, de arritmias ventriculares, paragens cardíacas entretanto verificadas. Não pensava na morte, nessa altura, apesar da grave insuficiência cardíaca. A morte sim, parece que pensava em mim. Vários episódios deste tipo ocorreram, não em casa, nem no hospital, mas em plena via pública, onde a taxa de sobrecivência é muito baixa ( salvam-se 15% das pessoas e as restantes 85% morrem). De todos os episódios só dois ocorreram antes de me aplicarem o CDI, esses seriam os mais graves, pois em todos os restantes, e muitos foram, o CDI sempre actuou devidamente, gorando os planos que a morte teria para mim.
O primeiro episódio ocorreu no Hospital de Beja, paragem cardíaca revertida pelo enfermeiro Armando, numa fase muito inicial, com intervenção dos cuidados intensivos, o que conduziu à minha primeira cirurgia. Após isso, e durante três anos tive vários episódios desse tipo, mas apenas o primeiro após alta da cirurgia, me encontrou ainda desprotegido, mas com sorte a morte não aproveitou a oportunidade. Foi nessa altura que se decidiu fazer a implantação do CDI, e a partiu daí todos os restantes episódios, mais de uma dezena e meia, ocorreram comigo defendido, e a morte não conseguiu vencer a batalha apesar de tantas oportunidades.

Após muitos episódios desse tipo, e devido ao agravamento muito rápido da insuficiência cardíaca criaram-se as condições para o transplante. Em determinado momento, já não havia garantias que, apesar da actuação do CDI o coração, devido à sua enorme debilidade, tivesse ele mesmo condições de reagir ao estímulo eléctrico do CDI, e repôr as condições "normais".

A partir daqui a imagem da morte passou a conviver comigo. Mais do que uma possibilidade passou a ser um probabilidade real e elevada. Enquanto aguardava por orgão compatível, sabia bem que a morte seria uma visita muito próxima e possível, indesejável, mas possível.Isto colocava na minha cabeça perguntas que noutro contexto seriam absurdas. Cremado ou entregue à terra ? Escrevi cartas à MA, às filhas, à C, dando algumas indicações. Onde ficar ? Como decorreria o funeral e aonde ? Que música tocar ??? O que iria ser de mim do meu corpo, para onde iria ? O que diriam de mim, que imagem deixaria nas pessoas ? O que "queria" para o "eterno repouso" ? Tudo me passava pela cabeça. Lembro-me que optei por ser cremado (é a moda ...) Via a pequena urna num local bem definido.

A noite acentuava a presença da morte, pois no sossego quase ouvia o coração a bater desordenado, alguns batimentos a falhar, como um motor engasgado. Medo não tinha, sabia bem que a morte faz parte da vida, e a morte por colapso é rápida e indolor, tinha-a sentido aquando das paragens cardíacas, não dava por nada, apagava como uma luz que se extingue. A morte acabava por ser o prolongamento normal da própria vida e está tão perto de nós como a vida. É apenas uma mudança de estado.

terça-feira, 6 de novembro de 2012



(latim fides, -ei)
s. f.

1. Adesão absoluta do espírito àquilo que se considera verdadeiro.
2. [Religião]  Sentimento de quem acredita em determinados ideias ou princípios religiosos. = CRENÇA
3. Religião, culto (ex.: fé cristã, fé islâmica).
4. [Religião]  Uma das virtudes teologais.
5. Estado ou atitude de quem acredita ou tem esperança em algo. = CONFIANÇA, ESPERANÇACEPTICISMO, INCREDULIDADE
6. Fidelidade.
7. Prova.
8. Testemunho autêntico dado por oficial de justiça.
 
Ninguém suporta este tipo de espera sem um objectivo, sem a fé de ser capaz do atingir. Os não religiosos, como é (era, não sei ...) o meu caso, não têm o impulso suplementar, nem forças suplementares para além daquilo que é racional. Se a relação com o "não sei o quê" não existe, ou é limitada, como acreditar ? É um tempo de acreditar. Se não acreditar que a espera resulta, como chegar ao resultado esperado ? Daí a dúvida, daí o novo papel de uma fé, uma fé sem religião ( pode ser ?), sim, julgo que sim...

Acreditava que algo se iria passar de positivo após tudo o que já se passou, tudo o que foi vivido e revivido. Surgiu assim uma grande fé no sucesso da cirurgia, na sua realização atempada, uma fé que me fazia não estar ali apenas por mero acaso, mas sim por um imperativo que me ultrapassava, num caminho com um destino, mesmo que amanhã viesse a morrer e nada se passasse conforme o desejado.

Uma fé ajudaria, sem dúvida, mas depende da postura de cada um na vida, não será uma fé cega e sem conteúdo, sem uma verdadeira razão para acreditar. Acreditar porque sim, não ! razões existiam e muitas ! Coisas que ocorreram e que, em cada incidente, me mostrou que não era aquela a minha hora, não seria o momento em que seria chamado. Quando, depois de uma paragem cardíaca, estava rodeado de médicos que estavam a jantar no mesmo restaurante, por mero acaso, e que me salvaram "in extremis". Quando o enfermeiro estava de passagem no corredor e actou numa outra paragem cardíaca. Quando estava junto a mim um enfermeiro a recolher sangue e me reanimou com um murro salvador no peito, parece que há uma mão invisivel que me devolve à realidade, ao meu presente, salvando-me de uma morte quase certa.

Assim desenvolvi uma fé própria, em alguém, em alguma coisa, uma capacidade de salvação que por vezes ultrapassou a lógica do raciocínio que se tornou numa força pela vida, mesmo nos piores momentos, sempre acreditei, sempre foi possível para mim uma forte crença no sucesso, e que mais tarde ou mais cedo a solução estaria na minha mão, como acabou por estar. Nessa fé nunca pedi demais, sempre pedi apenas o dia de amanhã. À noite, ao adormecer pedia (a quem ?) que me fosse concedido apenas mais um dia, e agradecia o dia que ía terminar. No dia seguinte a solução poderia surgir. Acabou por surgir.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Banho


banho
(latim balneum, -i)
s. m.
1. .Ato de banhar ou banhar-se.
2. Líquido em que alguém se banha.
3. Imersão em.
4. Exposição a alguma coisa (ex.: banho de sol).
5. Inserção temporária em determinado meio (ex.: banho de multidão).
6. Líquido para tingir.
7. [Informal]  Derrota pesada ou superioridade clara (ex.: deu um banho ao adversário). = BANHADA
8.  [Antigo]  Presídio de forçados.



Durante mais de três meses o meu conceito daquilo que é um banho teve de mudar. Banho passou a ser uma limpeza de alguidar em alguidar,  uma toalha húmida, por vezes escorrida para que um fio de água pudesse cair na face, provocando uma sensação de frescura, o cabelo muitos dias, ou até semanas, ficou por lavar. Banho na casa de banho, com duche e água corrente, cabelo bem passado por água, apenas alguns dias em que me encontrava melhor, ou depois do transplante, é que pude experimentar essa sensação boa de água corrente. Algo a que damos tão pouco valor, e que nos dá tanto prazer, mas que só valorizamos quando estamos a perder-lhe o acesso.

O banho numa cama é arte, sobretudo para quem tem de dar, e é um pesadelo para quem recebe. Pelo menos no inicio quando nos despimos e sentimos um frio intenso. No final, as voltas todas dadas, tudo resolvido, cama feita, lençóis novos, dá uma sensação de alívio, uma frescura, quando a cama nos abrasa, quando a noite foi inundada por suores, como muitas vezes aconteceu. Neste caso de manhã sentia uma enorme necessidade da água, mesmo apenas uma toalha húmida em contacto com o corpo. Mas vamos à arte.

O banho na cama começa pelo retirar da roupa, soltar os lençóis da sua posição e colocar uma toalha por cima para tapar as "partes íntimas", evitando a exposição, pois em geral era dado por duas pessoas, uma auxiliar e uma enfermeira. Duas bacias, água morna, sabão líquido, duas esponjas. Mais duas toalhas.
O percurso inicia-se na cabeça, na testa, nariz, olhos e resto da face, corre a água e logo se procura secar. Passar bem os olhos, para que se abram e não fiquem as pálpebras coladas pelos restos de uma noite em geral mal dormida. Passa-se ao peito e à barriga, braços e axilas. Segue-se para as pernas e pés que são lavados dedo a dedo e logo secos cuidadosamente. A secagem é imediata para não se apanhar frio. Ainda de barriga para o ar as partes íntimas ficam ao cuidado do paciente. Poucos enfermeiros se aventuraram por aí, a menos que seja verdadeiramente necessário. Nesse ponto cada um trata de si. Pára-se no limite da "humilhação" para o paciente. Depois com apoio, roda-se o corpo como se se estivesse a enrolar um cigarro, para lavar as costas e as nádegas, que ficam a cargo da enfermeira. Entretanto vai-se introduzindo o lençol limpo por baixo do paciente, e faz-se a cama de um dos lados. Terminada esta fase o doente roda no sentido contrário para cima do lençol limpo, e este é puxado por baixo do paciente, enquanto se retira o lençol sujo.

Trabalho limpo e rápido. O lençol é entalado na cama após bem esticado, e apenas se terá agora de colocar o lençol por cima e vestir pijama, para o que há sempre uma ajuda, pois tem de se assegurar a colocação dos fios e tubos retirados, e que os que o não foram não se soltem.

Tudo pronto, uma sensação de grande alívio, de limpeza, de frescura, misturada com uma vontade de meter os pés e as mãos dentro das bacias de água, chapinhar, o que por vezes os enfermeiros permitem.
No período de espera, por vezes estava em condições de ir à casa de banho, acompanhado com um enfermeiro ou auxiliar. Aí sentava-me no apoio metálico, que era uma espécie de "cadeira", onde me sentava, despia, e o acompanhante dava chuveirada dos pés à cabeça. Procurava proteger com sacos de plástico, pensos, tubos, aparelhos que me acompanhavam até ao banho, pois as perfusões não podiam ser interrompidas, e o banho era completo mas rápido. Já todos, homens e mulheres, auxiliares e enfermeiros, conheciam o meu corpo nu, tecendo comentários acerca da minha magreza e estado "escanzelado". Mas reconheço que tentavam ser agradáveis, positivos, e nunca deixavam transparecer que estariam a fazer algo de anormal, pelo que jamais senti algum pudor acerca do acto de tomar banho nu, perante homens e muheres que só  ali conheci. Ía e vinha em cadeira de rodas, pois só o pequeno trajecto entre a cama e a casa de banho, cerca de 50 metros, era demais para o meu coração tão debilitado.

Após o transplante, no isolamento era dado banho na cama, mas já no meu quarto/enfermaria, que tinha uma casa de banho privada, comecei por tomar banho ajudado, pois na primeira semana as forças eram poucas. Passado esse período, comecei a tomar banho sózinho, embora sentado, procurando estratégias que facilitassem o acto. Dificil era vestir sozinho, mas para simplificar já deixava a roupa em posição que facilitasse. Tudo tinha de ser estudado e a regra era não dar o passo apenas com a perna, mas antes, dá-lo com a cabeça, e aplicava-se na perfeição a tudo, para evitar passos em falso e riscos inúteis.

Retornado a casa, um novo desafio se colocava. As primeiras vezes a passar a parede da banheira parecia uma prova de salto em altura. Muito cuidado com tapetes, ou anti-escorregas na banheira, uma pega para me agarrar, um banco de plástico, para apoiar dentro da banheira foram aquisições obrigatórias, Pouco a pouco a confiança no novo espaço, a nova realidade, e lá nos vamos adaptando pois um homem adapta-se a tudo, ultrapassa todas as barreiras, para sair limpo e bem barbeado, e para obter conforto também é preciso correr riscos.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Sangue


sangue
(latim sanguis, -inis)
s. m.
1. Líquido espesso, ordinariamente vermelho, que circula pelas artérias e veias (ex.: sangue arterial, sangue venoso).
2. Princípio de existência, de força, de entusiasmo, de atividade. = VIDA
3. Grupo de indivíduos que têm um ancestral comum (ex.: são do mesmo sangue). = FAMÍLIA
4. Geração.
5. Natureza.
6. Corrimento sanguíneo. periódico das mulheres. = MENSTRUAÇÃO, MÊNSTRUO
 
Um dos meus pavores, a minha rejeição relativa ao sangue era mais forte do que eu. Qualquer recolha para análise, qualquer ferida, ou a simples visualização do sangue, ou da mera hipóteses dele poder correr era para mim motivo de uma reação de pânico. Recordo que uma simples recolha para análise feita com a minha filha Inês ao colo, para a acalmar, teria 4 ou 5 anos, acabou com o quase desmaio do pai, ficando a filha a retirar sangue com a maior das calmas. Dito isto, um dos meus terrores quando começou este périplo por sucessivos internamentos, eram as análises ao sangue, implicando a recolha do sangue, das "picadas" das agulhas. Mal sabia aquilo que estava para vir.

Quando do meu primeiro grande internamento, no qual fiz os by-pass cardíacos, já se constatava a dificuldade em encontrar as minhas veias nos braços, por vezes profundas, outras "bailarinas", como dizem os enfermeiros, para se referirem a veias que "fogem" da agulha, e não se deixam picar. Nessa altura tive alta com os braços todos negros, e cheio de hematomas. Afinal, ao pânico da recolha de sangue, outras situações se seguiram, relativas a cateteres nos braços para perfusãode medicamentos por via intra venosa, alguns dos quais muito agressivos para as paredes das veias, provocando inflamações, hematomas, derrames; tal é o caso da amiodarona, medicamento antiarritmico, que me foi ministrado por essa via, e em poucas horas me provocava inchaços , e sensação dolorosa nos braços.
Mais tarde, quando do internamento para transplante, a situação complicou-se, o internamento foi mais prolongado, foram colocados cateteres periféricos nos braços, cateteres centrais (em artérias), no pescoço, abaixo da omoplata, nas virilhas, pois as veias acabavam por se "cansar" dos ditos, e um cateter dura alguns dias e tem de ser mudado, e encontrado outro local para o aplicar, os cateres centrais podem durar quinze dias, e tudo tem de retornar ao princípio, isto é novo cateter, nova localização, nova complicação, dado que muitas das vezezs, não era possível colocá-lo numa primeira tentativa, implicando ser picado duas, três ou mais vezes. Já não sei se o meu problema era com a visualização do sangue, se com a picada da agulha ou apenas com o imaginar de tal situação.

Seja como for, mais um obstáculo a ultrapassar; aí se conclui que nos habituamos a tudo o que necessitamos. A nossa capacidade de adaptação, tendo limites, evolui, e acaba por nos dar a capacidade de suportar aquilo que parecia insuportável. Assim comigo e com a minha turbulenta relação com o sangue e as agulhas.

À medida que a espera por orgão compatível se prolongava, os meus braços iam ficando cobertos de nódoas negras, cada vez mais a recolha de sangue era penosa, uma das vezes fui picado sete vezes seguidas até se conseguir retirar sangue para uma hemocultura, que implicava várias recolhas. As sete vezes apenas para uma das recolhas.

Os cateteres, que inicialmente eram colocados nas mãos ou nos braços, passaram nalguns casos a cateteres centrais, colocados nas artérias, para continuar a assegurar a medicação intravenosa, e para meu repouso, pois alguma da recolha de sangue era feita no cateter central, "poupando-me" a mais umas picadelas. Cada vez que eram colocados, era como se de uma pequena cirurgia se tratasse, feito por um médico e não por enfermeiros, era dada uma pequena anestesia local, para a sua colocação, pois havia que perfurar a artéria, que tendo sangue sob pressão, tem risco de hemorragia, coisa que não se passa nas veias.

Após o transplante as recolhas de sangue continuaram, quase dia sim dia não, pois as doses de alguns medicamentos implicavam conhecer os seus valores. Algumas das vezes não sendo já possível encontar região dos braços onde picar, foi necessário chamar uma anestesista que fazia a recolha de uma artéria, no pescoço, nas virilhas, no fundo nos locais onde se aplicavam os cateteres centrais.

Quando tive alta , depois do transplante, os braços estavam cobertos de nódoas negras, de hematomas, as mãos inchadas, dormentes, pois à falta de outras soluções, as mãos também serviram para colocar cateteres ou fazer recolhas. Hoje, passados muitos meses, as análises são mensais e o corpo regenerou, embora as mãos continuam com dormencia e dores.

Agora os braços votaram quase ao normal, e o débito nas veias aumentou, pois era o falta de débito que dificultava as recolhas, o "novo" coração tem agora uma capacidade de bombagem de sangue muito melhorada. Mas o meu pânico com o sangue permanece, agora mais controlado. Ainda olho para o outro lado quando a agulha penetra na veia, e procuro na extensão do mar, respirar calmamente, e apenas pensar nesse mar a perder de vista, imagem que me tranquiliza e que permite que tudo possa ser feito com calma.

A adaptação faz-se, mas quando passa a necessidade, voltamos aos nossos medos, aos nossos pânicos, como se nada se tivesse passado. Regeneramos a postura e a atitude face às novas situações. A nossa mente é mais forte, em qualquer dos sentidos, e assim nos mantêmos. O sangue continua a ser um fantasma que me assusta, apesar dele ser a essência, a corrente que nos traz a vida.

sábado, 27 de outubro de 2012

Luz


luz
(latim lux, lucis)
s. f.
1. O que, iluminando os .objetos os torna visíveis.
2. Candeeiro, lâmpada, vela ou outra coisa acesa.
3. Efeitos de luz em quadro, fotografia ou outra representação.
4. O que ilumina o espírito. = CLARIDADE
5. Claridade de um astro. = DIA
6. Brilho, fulgor.
7. Critério.
8. Evidência.
9. Ilustração.
10. Publicidade.

Uma das coisas que mais me incomodava durante os diversos internamentos é a luz. Habituado a ambientes mais sombrios e à escuridão durante a noite a luz incomoda-me e impede o descanso. Ali havia sempre pretexto para manter a luz acesa. Ou por necessidade, descuido ou esquecimento. As luzes no tecto, em cima dos olhos, quando deitado, ou a luz no corredor que não podia ser desligada durante a noite. A luz individual, por cima da cabeceira da cama, ainda a que menos incomodava.

Havia sempre pretexto para manter a luz acesa, ou porque um doente ía ser transferido, ou porque se aguardava um doente que ía chegar, ou porque "não se vê nada", ou porque as luzes "se estão lá é porque são precisas".

Durante a noite a claridade na UCI era total e só conseguia dormir com umas vendas nos olhos o que ajuda muito as pessoas que têm grande sensibilidade à luz, ou têm dificuldade em dormir com luz, é o meu caso. Nas enfermarias era um pouco diferente, as luzes eram apagadas por volta das 23 horas e, a partir daí, o sono podia tomar conta de mim em geral "ajudado" por um comprimido para dormir.

Mesmo durante o dia é hábito manter difusores com quatro tubos fluorescentes acesos, e durante algum tempo tive de suportar nos olhos essa catadupa de luz, pois não era capaz de me levantar para as apagar.
A pouco e pouco, com a minha insistência, com os meus pedidos, todos foram percebendo o quanto me incomodavam as luzes acesas, e como ser um pouco mais exigente nesse aspecto tornava a minha "estadia" um pouco mais confortável. e, uma vez explicado, com insistência mas com educação e simpatia, acabamos por conseguir o que queremos, quando os pedidos têm bom senso e são de facto razoáveis.

A minha "guerra" com a luz acabou por ser ganha. Mas tive de fazer muitas adaptações, pois havia coisas impossíveis de fazer. Por exemplo, o corredor da UCIC ficava com as luzes acesas toda a noite, porque sendo apenas um único circuito, ou se mantinham as luzes todas acesas, ou pelo contrário teriam de apagar tudo, coisa não aceitável numa unidade como aquela. Assim a claridade só podia ser diminuida com as minhas vendas nos olhos.

É a luz que nos impede de ver, impede de dormir, a luz que não nos deixa observar "por dentro", que nos deixa despertos, pensamentos em estado de alerta, quando o que pretendia era exactamente o contrário disso, o descanso, o esquecimento de mim, esperar sem "medir" o tempo que passa.
Foi assim uma batalha contra a luz, uma batalha pelo lusco-fusco, que não pela escuridão. Tudo acabei por aceitar como me foi apresentado, mas procurando, com todo o cuidado, o melhor e maior conforto, pois sabia que ía por ali passar bastante tempo, um tempo que eu não saberia estimar.

Hoje, que se fala tanto em redução de custos, em poupar, veja este problema com outros olhos. Na realidade muito se poderia poupar com um pouco mais de atenção às luzes acesas totalmente inúteis. Mais poupança e mais conforto, pois muitos doentes queixavam-se do mesmo que eu, e referiam a incomodidade nos olhos causado pelo excesso de luz, e quanto interferia com a vista, pois estavam como eu próprio, muitas horas na cama, de costas, com os olhos pregados no tecto.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Casa


casa
(latim casa, -ae, cabana, casebre)
s. f.
1. Nome genérico de todas as construções destinadas a habitação.
2. Construção destinada a uma unidade de habitação, geralmente unifamiliar, por oposição a apartamento. = MORADIA, VIVENDA
3. Cada uma das divisões de uma habitação. = CÓMODO.CÔMODO, COMPARTIMENTO, DEPENDÊNCIA
4. Local de habitação. = DOMICÍLIO, LAR, MORADA, RESIDÊNCIA
5. Anexo a um edifício.
6. [Náutica]   [Náutica]  Compartimento destinado a máquinas ou equipamento especial (ex.: casa das máquinas).
7. Conjunto de pessoas da família ou de pessoas que habitam a mesma morada.
8. Conjunto de despesas com a habitação.
9. Estabelecimento comercial ou industrial (ex.: casa de chá, casa de fados, casa de hóspedes, casa de saúde). = EMPRESA, FIRMA
10. Lotação de um estabelecimento comercial, geralmente de diversão ou espetáculo (ex.: casa cheia).
11. Local ou instalação que se considera pertença de algo ou alguém (ex.: equipa.equipe da casa; jogar em casa).
12. Designação dada a algumas repartições ou instituições, públicas ou privadas (ex.: Casa da Moeda; Casa dos Açores).
13. Conjunto de pessoas que trabalham diretamente um chefe de estado (ex.: casa civil).
14. Família pertencente à nobreza ou à realeza (ex.: casa de Bragança).
15. Cada uma das divisões resultantes da interseção de linhas em tabela, tabuleiro, tabuada, mapa, etc.
16. Escaninho do tabuleiro do gamão.
17. Posição respectiva dos algarismos.
18. Abertura onde entra um botão de roupa. = BOTOEIRA
19. Número arredondado aproximado (ex.: ele anda na casa dos 40).
20. Posição de um algarismo em relação aos outros que compõem um número (ex.: casa das unidades, casa das centenas, casa decimal).
21. [Encadernação]   [Encadernação]  O mesmo que entrenervo.
 
 
Os primeiros dias de regresso a casa, em Fevereiro de 2011, deram origem a reações contraditórias. Claro que me sentia muito bem, finalmente livre das maiores dificuldades que alguma vez sentira na vida. Livre do quarto, da enfermaria, daquela cama onde morria aos poucos, na espera. No entanto a adaptação era dificil, e a minha autonomia reduzida, apesar dos esforços da MA para minimizar os problemas, trazendo as melhores soluções.
A cama teve de levar uma almofada para levantar os pés, devido ao edema, não tinha cadeira ou sofá onde me sentisse bem, o banho era complicado, embora se tivesse colocado pegas e um banco de apoio na banheira. Havia em mim uma tendência para replicar em casa os modos de funcionamento do hospital, que no caso funcionavam como referência. Movia-me com dificuldade, agarrado às paredes, as refeições não sabia bem como as fazer, as regras de higiene e limpeza causavam-me atrapalhação, pois muitas vezes não sabia bem como fazer, não tendo ainda autonomia para me deslocar no exterior, além disso havia chuva e frio, receando alguma constipação; tinha medo e tudo me assustava ou causava dúvidas. A MA fazia as compras, coisa que eu sabia que detestava, a comida, e tratava de mim. Mas via-se bem que tal era um peso, um sacrifício, ao dar~lhe estas "tarefas domésticas" que detestava, assim sentia-me mal também por isso. Demorei algum tempo a encontrar um equilíbrio, mais adequado; entretanto do Centro de Saúde obtinha todo o apoio de que necessitava, vinham fazer pensos, nas pernas, fisioterapia, para dar continuidade ao que iniciara no hospital.
A minha mobilidade evoluía pouco devido ao inchaço das pernas e pés, e as dores lombares e na coluna, que se tornavam cada vez mais duras. De noite tinha de me lavantar muitas vezes para o WC, com as dificuldades inerentes à minha mobilidade. Cheguei a ter saudades do urinol do hospital...
Os primeiros tempos foram dificeis; entretanto começava a rotina do acompanhamento em S.Marta, que de inicio era semanal. Ía num transporte dos Bombeiros, que me custava os olhos da cara. Levantava-me de madrugada, e ía a Lisboa, regressando no final da tarde. Cada viagem podia custar entre 120 e 150 euros, todas as semanas.
Habituei-me bem á medicação, reservara uma mesa apenas com esse fim, onde dispunha de mais de duas dezenas de medicamentos, ampolas, gases, pensos e outro material sobretudo para controlo da diabetes. Entretanto ocupava o tempo a ler, escrever, no computador ou na televisão. A rotina começava cedo, pois pelas 8h00 já tinha medicamentos a tomar, e deitava-me cedo, pelas 21h00 já estava estafado, e precisava de repouso. Por vezes deitava-me de tarde, para aliviar as pernas, aproveitando para retirar as meias elásticas, que me tinham sido prescritas, mas que muito me incomodavam.
Pouco a pouco recuperava as forças, a voz, espaço de manobra, e ía-me libertando da doença, e convivendo com o meu novo coração que se portava bem ao que se ía sabendo.

Medicamento


medicamento
s. m.
1. Substância que, devidamente manipulada, se aplica ao organismo doente com o fim de o curar.
2. Remédio.

Durante muitos anos até surgirem os primeiros sinais de doença cardíaca, da "cardiomiopatia ventricular diltada", com "insuficiência cardíaca grave", não tinha qualquer contacto com medicamentos. Era uma pessoa saudável, alguns pontos fracos, mas poucos, não carecendo de mais do que uns vulgares anti-inflamatórios, ou cêgripes, e pouco mais. Foi a doença cardíaca que modificou a minha relação com os medicamentos e com isso tudo se alterou na minha vida. Não estava preparado para esta dependência, mas posso assegurar que depressa nos habituamos, e diria que hoje até constitui uma "ocupação". A relação com eles é agora despreocupada e sem "dramas", garantindo as tomas nas doses adequadas, e nas horas certas. Penso que quanto maior a resistência aos medicamentos, mais dificil é conviver com eles e cumprir aquilo que pedem os médicos.

Fazer coincidir com momentos do dia como as refeições, ou o levantar ou o deitar facilita-nos a vida e evita esquecimentos, possuir uma folha terapêutica diária, como aquela que o Dr RS nos entrega nas consultas de rotina, também ajuda, qual lista de supermercado, a respeitar as horas, evita esquecimentos, mas no final acaba por ser memorizada. Também ajuda ter uma caixa doseadora que todos os dias, antes do jantar, preparo para o dia seguinte. Essa caixa tem compartimentos com a indicação do momento da toma e basta lá colocar os comprimidos, cápsulas e pastilhas para aquele momento. Assim gerir a medicação é mais fácil, sobretudo para quem, como eu faz 24 tomas diárias.

Existem medicamentos que não cabem nas caixas, ou apenas devem ser retirados das embalagens no momentos da toma, esses recorto-os e coloco junto da dita caixa para que não esqueça. Depois ainda há as saquetas, pipetas e outras "tretas", que registadas na folha terapeutica facilitam a aquisição do hábito.
De que estou a falar quando falo de medicação?
Bem, no total de um conjunto de medicamentos sob diversas formas, comprimidos, pílulas, cápsulas, saquetas, pingos, que no meu caso chegam a mais de duas dezenas de tomas diárias. A medicação anterior e posterior ao transplante é muito diferente, pelo que após o transplante, os hábitos mudaram, quer por ter-mos novos medicamentos quer por serem em maior quantidade e de maior responsabilidade. no que toca ao rigor das tomas e ao respeito dos horários.

Assim, mal mal me foram detectados os primeiros sinais da doença cardíaca grave, e ainda antes da primeira cirurgia, comecei de imediato a tomar diuréticos, medicamentos para controlar a tensão e o ritmo cardíaco, vaso dilatadores, e uma rastatina para controlar o colesterol; posteriormente aquando das crises de taquicárdia, comecei a tomar a amiodarona. A esta medicação junta-se a da HBP. Tudo isto eu tomava junto com as refeições ou não, em doses variáveis, geridas pela cardiologista, uma medicação que tomei durante cerca de quatro anos, desde os primeiros sintomas até ao transplante, que me manteve estabilizado, controlado e sobretudo vivo...No inicio estranhei. Assim como se fosse um idoso, sentar-me à mesa para uma refeição e alinhar em cima da toalha uma fila de comprimidos, inteiros ou em metades ou quartos, é algo "deprimente", sobretudo quando ainda nem se tem sessenta anos, sempre tive a ideia de que estaria incólume a este tipo de patologias mais graves, que aliás nunca se tinham manifestado. Depois habituei-me. Afinal não podia viver sem eles. A medicação foi.se mantendo de consulta para consulta, e apenas as doses eram alteradas, pontualmente, em função dos sintomas relatados ou das situações concretas que se íam passando. Mais tarde comecei também a tomar medicação para proteger o estômago da toma de determinados medicamentos. tudo medicamentos muito vulgares, a maioria no "top ten" dos mais consumidos no país. Pois, nada de muito original, ou as doenças cardio vasculares não fossem das mais vulgares e que têm associada uma das maiores taxas de mortalidade.

No período de espera por um dador, enquanto estive internado na UCI, para lá do já referido, juntaram-se antibióticos, nos momentos, e foram vários, em que algumas infeções me atacaram, medicamentos para a diabetes, que entretanto aproveitou a brecha, a debutamina 210, doseada através de um cateter, mantinha o estímulo que me permitia ter alguma "chama", mantendo o meu velho coração com um nível de funcionamente adequado, embora artificialmente, nível compatível com "serviços mínimos".

Após o transplante tudo se modificou. Deixei de ser um "doente cardíaco" e passei para outra categoria, um transplantado com as intercorrências e riscos associadados. O principal era o risco do sistema imunitário atacar o orgão, elemento estranho, invasor, que não pertence ao corpo original criado por Deus. Para isso se tomavam agora imunosupressores. Vitais para evitar a rejeição, a falha na sua toma poderia ter um desfecho fatal pelo que o rigor na toma é muito importante.

Também os corticóides marcaram presença, para prevenir infecções, e também pelo seu efeito imunosupressor. Outros antifungicos, antivirais, diuréticos, controlo de colestrol, etc.
Estado geral, em risco permanente, pode conduzir a outras patologias que carecem de terapia adequada. A diabetes, que implica a toma de insulina,  a tomboflebite, que recomenda anti coagulantes, os problemas da coluna, a osteoporose, enfim uma longa lista de situações potenciadas pela patologia ou pela própria medicação.
Pouco a pouco, à medida que a situação foi evoluindo favorávelmente, medicamentos houve que foram sendo retirados, ou cujas doses foram muto reduzidas. Para que tudo isto funcione é preciso rigor e organização, estruturar bem para que todas estas tomas não se tornem numa penalização insuportável.que tomam conta da nossa vida. Afinal tem de ser possível relativizar tudo isto, sabendo que a nossa qualidade de vida depende muito da toma correcta da medicação. E se é sacrifício pensemos nos outros casos, situações de pessoas sem solução, ou submetidas a muito maiores privações. Afinal a medicação não é o problema mas sim parte da solução.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Visita


visita
s. f.

1. Ato ou efeito de visitar.
2. Pessoa que faz uma visita.
3. Inspeção; vistoria.

visitas
s. f. pl.
4. Cumprimentos; lembranças; saudades.
visita de médicoa que é de curta duração.

visitar - Conjugar
v. tr.
1. Ir ver por cortesia, dever, curiosidade, caridade, etc.
2. Inspecionar, passar revista a.
3. Viajar por, percorrer.
4. Aparecer; mostrar-se; declarar-se.
5. Dar busca a.

Ao longo do internamento a minha relação com as visitas foi estranha e evoluiu com o evoluir da situação. Muitas vezes era agradável receber pessoas, outras não. Algumas teria preferido a solidão, outras, muita gente a meu lado. Não houve nunca um batalhão de gente comigo, sendo mais certo ter a MA, as filhas e pouco mais. Pontualmente o LM (visita que muito me espantou pelo interesse com que seguiu o problema), a C, o RM, a CA,  o AS, o Z e a T. A partir de determinado momento, a minha fragilidade era tal que já não era capaz de estar com as visitas, sobretudo com novas visitas, ansiosas de falar, de saber e trazer novidades, conhecer a "história", coisa que eu já tinha dificuldade em acompanhar mentalmente.

Perante isto, acabei por ser apenas acompanhado pela MA, as filhas, que naturalmente exigiam menos esforço da minha parte, e me traziam apoio psiquico e alimentar, e uma palavra amiga, numa fase em que praticamente nada comia, e o que me traziam do exterior era a única coisa que me agradava.

Foi dificil limitar, e algumas pessoas terão talvez levado a mal, terem sido "travadas". A minha energia já não era suficiente e tinha de a aproveitar para outras finalidades, sendo que a maior de todas era sobreviver. As visitas dos outros internados algumas vezes incomodavam, se bem que, estando a aguardar o transplante na UCIC, as visitas eram muito limitadas e bem controladas, e em geral, resumidas a apenas uma pessoa por doente e durante um curto período de tempo.

Certo que a intenção de todos era melhorar o "moral" do doente, mas nem sempre o que se fazia para esse fim era dessa forma entendido. Os sentimentos eram contraditórios e por vezes as alegrias das visitas eram compartilhadas e eram transmitidas, outras, pelo contrário, chocavam-me, pelo contraste com a minha situação, gerando mesmo alguma "revolta". Nem sempre o que era feito com uma intenção, era percebido por mim no mesmo sentido. Tudo era filtrado através de um filtro que mudava o seu critério em função da minha cabeça, e da forma como esta se encontrava. Tudo estava bem, mas nem tudo me fazia bem. Por vezes quando a visita saía eu ficava destroçado e revoltado.

Aos fins de semana, o grande vazio. Uma enorme avalanche de visitas mas para os outros. É no fim de semana que a maioria das pessoas vêm, mas para mim era mais durante a semana. Nunca tive falta de acompanhamento, nem de amizade e apoio. De qualquer forma eu estava sempre "acompanhado" com os meus livros, o computador, o blog, as minhas músicas, os meus cadernitos, tudo aquilo que povoava o meu pequeno mundo e o tornava melhor, mais pleno de coisas boas. Não pensar que é sobretudo dos outros que vem a mensagem de ânimo, mas desenvolver a capacidade de se auto animar.

As visitas nem sempre eram benvindas, reconheço, para quem está tanto tempo à espera, há momentos de fadiga, momentos em que a nossa solidão perante a morte nos ajuda, nos faz pensar, nos acrescenta a vontade de lhe fazer frente, e a presença de visitas, nesses momentos,  é um elemento que perturba essa solidão conveniente. Mas sem as visitas é dificil sobreviver, dificil estimular a esperança, e encher os depósitos com a dose necessária. O ideal é um equilibrio, nem demais nem de menos, e nos momentos certos (o que é dificil de adivinhar...) Entendo que quem tem um ente próxino doente, sofre por ele, sente a sua falta, procura a proximidade porque isso também lhe dá alento, e ajuda a suportar a dôr e a distância.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012


(latim pes, pedis)
s. m.

1. Parte do corpo humano que se articula com a extremidade inferior da perna.Ver imagem
2. Parte final dos membros, especialmente posteriores, dos vertebrados terrestres.
3. Parte que serve para sustentar certos móveis e utensílios.Ver imagem
4. Medida de extensão (= 33 centímetros).
5. Cabo (de utensílio).
6. Haste, tronco, raiz.
7. Pedúnculo, pecíolo.
8. Base, sopé.
9. Borra, fezes, sedimento.
10. O último parceiro a quem compete jogar.
11. O que fica da uva depois de espremida uma vez.
12. Espelho de um degrau de escada.
13. Pilar.
14. [VersificaçãoConjunto de duas a quatro sílabas que serve para medir o verso grego e o latino.
15. [Figurado]   [Figurado]  Modo, maneira.
16. Estado de um negócio, de uma empresa, de uma negociação.
17. Pretexto, motivo, ocasião.
18. [Encadernação]  Parte inferior do livro oposta à cabeça.
19. [Marinha]  Ponta do cabo c
Uma das maiores dificuldades após o transplante foram os edemas nas pernas e pés. Praticamente desde a cintura até às pontas dos dedos dos pés tudo era um enoeme inchaço, queimpedia ou dificultava muito a mobilidade. Os pés tornaram-se um enoeme peso para o resto do corpoe uns enormes "trambolhos", que tudo dificultava. Nada era fácil em tal situação.

Para contrariar mandavam-me manter os pés levantados, mais alto do que a cabeça. Assim dormia com os pés mais altos que a cabeça, sentava-me e pés eram colocados sobre um sofá ou uma cadeira; comia com os pés levantados. De tal forma que a coluna vertebral, para onde o peso era transferido acabava por se ressentircom muitas dores derivado do peso suplemantar que era obrigada a suportar. As dores eram imensas, e as mazelas mantiveram-se até hoje, agravando problemas que já teria, após longos meses deitado em espera. Tomava doses de diuréticos, urinava bastante, sobretudo durante a noite, mas o inchaço que melhorava muito durante a noite, quando estava na posição horizontal, mal me colocava na vertical, regressavm, e ao final do dia os pés eram o dobro do seu tamanho normal. dado que tinha na perna direita cicatrizes da anterior operação (by pass), feita há três anos, o inchaço nessa perna acabou por forçar a abertura dessa cicatriz, ao que se seguiu uma pequena infeção no local. Tinha um penso que cobria essa parte da perna, dia sim dia não era mudado, e a cicatriz era desinfectada, pois apresentava sinais de evolução duvidosa.

A solução proposta foi passar a usar meias elásticas, para compressão, mas os seus vincos, faziam muitas vezes garrotes que pioravam a situação. Até hoje ainda é a situação que se mantém, apesar de agora utilizar meias mais ligeiras. Foi uma fase que durou muitos meses para além da alta. O problemas nas pernas e pés acabou por evoluir para algo mais complicado, do domínio vascular, com o surgimento de trombo flebite numa das pernas,, e a oclusão das veias na outra perna, na direita, onde já tinha sido retirada a veia safena aquando da operação de by pass, dificultando a circulação. Entretanto a diabetes em nada ajudava na situação, e tudo era muito incomodativo, e tinha riscos. Mais uma das tais "intercorrências".

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Alta


alta
(feminino de alto)
s. f.
1. Aumento no preço ou no valor. = SUBIDABAIXA, DESCIDA, QUEDA
2. Permissão para o doente sair do hospital.
3. Documento que contém essa permissão.
4. Regresso de um militar ao serviço depois de baixa ou de licença.
5. Zona de uma povoação, geralmente de uma cidade, mais elevada em relação ao que a circunda. (Geralmente com inicial maiúscula.)
6. Parte da sociedade considerada de maior categoria ou de maior prestígio.
7. Demora, paragem.parada.


Após aquele quase mês no quarto, a que chamavam enfermaria, o Dr RS, começou a dar sinais de que a minha estadia estaria perto do fim. O edema nas pernas e pés mantinha-se, embora com algumas melhorias devido ao efeito de doses altas de diuréticos, exercício, pés e pernas colocadas em posição elevada, o que me incomodava, particulermente a coluna. As dores, nesse particular eram muitas, e as pernas assumiam um peso de toneladas, seja pelo seu inchaço, seja pela sua incapacidade de servir de base de suporte ao torax, pois a ausência de massa muscular era aflitiva. O peso, e sobretudo o músculo, tinha-se volatilizado, e agora, segundo a fisioterapeuta demoraria muito tempo a recuperar, talvez até anos. A destruição é rápida, a recuperação muito lenta.

Mal, com alguns dias de antecedência, o Dr RS começou a pôr a hipótese de alta, sempre com poucas palavras, eu percebi que estava por dias. O regresso a casa implicava alguns cuidados, nomeadamente o controlo total da medicação, que estava adquirido, uma aprendizagem relativa à alimentação, nomeadamente o que poderia ingerir ou não, e a forma de confecionar para evitar contaminações, os cuidados com higiene pessoal, com a limpeza da casa, que deveria ser objecto de uma limpeza profunda antes do neu regresso, nomeadamente quarto e casas de banho. Os agentes contaminantes eram muitos, e estavam por todo o lado. Da alimentação falarei mais tarde. Foi-me cedida uma brochura onde a informação acerca de alguns hábitos, atitudes e recomendações, sobretudo para os primeiros tempos.

Veio a Drª RBM, que me explicou tudo acerca da forma de lidar com a minha nova "coqueluche", a diabetes, a fisioterapeuta explicou que poderia optar por fazer recuperação cardíaca ali em S. Marta, mas tal implicava permanecer em Lisboa, coisa que era dificil, e preferia regressar ao Alentejo, de que tinha saudades, e finalmente uma conversa com o Dr RS com uma longa lista de perguntas que fiz e às quais respondeu, como sempre, poupando as palavras, mas sendo claro. Por exemplo, o uso da máscara, era para mim algo que teria de esclarecer, pois não seria necessário andar sempre com ela, mas apenas em situações de risco mais acentuado, como idas ao hospital, um ninho de bactérias, centro de saúde, sempre muito infectados com virus da gripe e outra "bicharada", zonas comerciais, transportes colectivos, presença de pessoas com gripe ou outras infeções e apenas durante os primeiros meses. Aos poucos iria abrindo até o seu uso poder ser quase totalmente evitado.

Entretanto a MA ía trazendo a roupa que levaria para casa, pois naquela altura, com menos 23 quilos, nada me servia, tudo era enorme, e não valia sequer a pena comprar novas roupas, pois não sabia para já qual seria a evolução. Tudo requeria adaptação.

Por outro lado, após a alta, iria iniciar um processo de acompanhamento que, durante seis meses, seriam visitas semanais a S. Marta, um esforço físico, pessoal e financeiro excepcional, pois, por coincidência, foi nessa altura que terminaram os apoios aos transporte de doentes em ambulância, forma como das primeiras vezes viria, e a vinda a Lisboa iria custar ceca de 140 euros por semana, pois tinha-me associado dos bombeiros, e isto era "apenas" 50% do valor a pagar. A vinda de carro seria possível mas inviabilizou-se, pois a condução em Lisboa não agradava à MA, e de transporte público para já não.

Na data aprazada para a alta, a MA ficou em casa para preparar tudo, e pelas 15h os Bombeiros foram-me buscar a S.Marta. Estava pronto, vestido, o que me custou muito, tinha as coisas arrumadas, coisa de que se ocuparam as minhas filhas, e vim de cadeira de rodas para a ambulância. Não foi necessário a maca, tudo correu da melhor forma. Ajudado pelo bombeiro, sr F, acabei por subir para a ambulância, e fizemo-nos ao caminho. Era fim de tarde de um dia de sol de Janeiro, e há muito que não saía do Hospital. A expectativa era grande, começámos pelo trânsito do Marquês de Pombal, ponte 25 de Abril, A2 rumo a Sul, o mais desejado. Tinha feito o trajecto inverso, pelo mesmo caminho, no inicio do Outono, este tinha passado, e já estávamos a meio do Inverno. Saboreava todo o ar que me rodeava, era fresco, não o ar empestado do hospital, podia usufruir do simples acto de respirar, coisa que há muito não sucedia. Os olhos toldavam com a claridade, felizmente alguém se tinha lembrado de me enviar uns óculos de sol, pois não suportaria a luminosidade, habituado que estava à penumbra. O bombeiro dizia ter pensado que iria buscar alguém de maca, prostrado, e afinal tinha-se admirado, como após menos de um mês depois do transplante, estava de pé, andava, embora com dificuldade, e só a magreza e as pernas inchadas e passo atabalhoado, indicavam que tinha estado doente de forma grave.

A travessia do Alentejo fez-se de forma rápida e sem dificuldades, o verde estava por todo lado pois tinha sido um ano muito húmido, tinha-me apercebido disso durante os meses de espera, e a natureza explodia, sobretudo o Baixo Alentejo, onde os campos eram exuberantes.

Cheguei a casa pelas 18h. Ajudaram-me a sair da ambulância e lá me fui "arrastando" até casa. A MA tinha telefonado á minha médica de família, DrªAM, que veio passado algum tempo, com o enfermeiro S, para tentar desde logo organizar um plano para as próximas semanas. Havia pensos a fazer, que iam ser feitos em domicílio, pois nem pensar em qualquer deslocação ao Centro de Saúde, por enquanto. Havia fisioterapia a fazer, em casa nos primeiros tempos, para tentar melhorar o meu desempenho e mobilidade, estaria assim dependente dessas visitas e da MA para tudo o restante, pois estava proibido de conduzir no mínimo por seis meses, não viesse a ser destruida a sotura que tinha no peito, com algum impacto indesejado. Estava então numa dependência dos outros, e só me restava, ler, escrever, ver televisão, consultar o computador. Um pequeno conjunto de actividades simples das quais pouco passaria. Já estava reformado, dado o anterior nível de insuficiência cardíaca, e as complicações que entretanto ocorreram recomendavam que me mantivesse em "serviços mínimos". Escusado será dizer quanto tal situação me penalizava, mas apesar de tudo tinha sido possível o mais difícil, tinha salvaguardado a vida, contra todas as investidas da morte, e muitas foram. Deus não me queria ainda no meio do seus.

sábado, 29 de setembro de 2012

Organização


organização
s. f.
1. Ato ou efeito de organizar.
2. Organismo.
3. Estrutura.
4. Fundação, estabelecimento.
5. Composição.

Agora no quarto, entregue à minha sorte, teria de encontrar uma organização que eu pudesse assegurar.

O dia começava pelas 7h00, pois tinha medicação a tomar, e quase todos os dias havia sangue a tirar, Era o enfermeiro quem se encarregava, e antes das 7h00 já acordara logo que escutava os passos no corredor. Ouvia um pouco de rádio, até ir tomar banho, pelas 8h30. Nos primeiros dias o banho era apoiado por um auxiliar que me ajudava nos diversos movimentos; o WC estava mal adaptado, e tinha dificuldade em o utilizar. Pelas 9h00 vinha o pequeno almoço, entretanto já tinha comido alguma coisa, para tomar a medicação pelas 8h00, daqueles copinhos que já falei. Começava a ter fome, muita fome, e comia tudo o que me era dado. O resto da manhã era um corropio.

Quase todos os dias havia raios X, electrocardiogramas, fazer a cama e limpar o quarto, para o que tinha de me sentar no cadeirão para não atrapalhar, havia ainda fisioterapia, de tal forma que muitas vezes atrapalhavam-se uns aos outros, e o meio dia chegava muito depressa. Quando já estava melhor, e tinha tempo, aproveitava para fazer "corredores", isto é andava corredor acima e abaixo, primeiro apoiado pela Sandra, a fisioterapeuta, mais tarde sózinho agarrado às paredes e com muito cuidado. Colocava sempre uma máscara para me proteger.

O almoço vinha por volta das 13h00, e na actual modalidade lá vinha a caixa azul, isotérmica, com a refeição a escaldar. Um dos dias colocaram lá uma gelatina, por engano, e vinha em água...
Agora tinha ainda um novo brinquedo para me entreter, um dispositivo para medir a glicémia, e uma caneta para administrar a insulina, tinha também conhecido a Drº RBM, jovem endocrinologista, que me explicou tudo e me acompanhava no que se referia aos diabetes. Antes de pequeno almoço, almoço e jantar havia que picar o dedo para medir a glicémia, e administrar insulina com a tal caneta, com a qual dava uma picada na barriga ou nas coxas.

Após o almoço descansava. Os pés e as pernas muitos inchadas recomendavam descanso; era um peso que deixava de sentir durante cerca de duas horas, até chegar o lanche pelas 16h00. Durante esse tempo dormia, ou ouvia música no iPod. Entre o lanche e o jantar, cerca das 19h00, lia, pois preferia a manhã para escrever, por haver mais luz, e para me recordar mais facilmente do sucedido. Já nesta altura começava com alguns problemas de vista. O jantar vinha cedo. Com frequência tinha visitas por essa hora, sobretudo as filhas, pois a MA, quando vinha escolhia a hora de almoço. Assim tinha quase sempre apoio para as refeições, pois os movimentos ainda não eram à vontade.

O jantar seguia rapidamente o mesmo caminho das outras refeições. A fome apertava, tinha perdido muito peso, mais de 20 quilos e a medicação abria o apetite. Após o jantar e a saída das visitas, pelas 20 horas era a tlevisão que me interessava. Notícias, debates, até cerca das 22 horas. Foi ali que apanhei o hábito de ver o Jornal das 9h, do Mário Crespo, visto em geral já na cama, pois já não suportava o cadeirão, e as pernas altas, devido ao edema, incomo davam-me. A ceia só era servida muito próximo da meia noite, pelo que até lá apagava todas as luzes e ouvia música no iPod, por vezes adormecia. Era um sossego, por vezes adormecia e era acordado para a ceia, e para alguma coisa que a enfermagem quisesse, medicação, avisar das análises do dia seguinte, para estar de mente preparada, dada a dificuldade da recolha. Colocar o urinol à mão, pois de noite era um desatino, os medicamentos para a manhã, ali à mão para não ter de levantar, água, liquido para desinfectar as mãos, iPod, telemóvel para poder ouvir rádio de manhã, comando do ar condicionado, pois estava frio, compressas, e de luz apagada adormecia, para um sono pouco duradouro, , pois acordava muitas vezes para urinar. Muitas e muitas vezes. Começava também a ter dores muito intensas na coluna.

À medida que ía sentndo maior autonomia e capacidade de me movimentar, fui dando cada vez mais e maiores voltas no corredor. Descubro o centro espiritual, de que falarei depois, e ía com frequência lá. Senti alguma solidão neste quarto, mais do que no isolamento que permitia ver o exterior, no quarto não.. Mas a solidão jamais me preocupou, não sou daquelas pessoas que precisa de estar sempre acompanhada, gosto do silêncio, sei ocupar a minha cabeça e detesto confusão. A solidão acalma-me. A solidão protege-me. E ali tinha essa calma que a solidão me proporcionava. Sentia melhorias significativas, e o melhor de tudo, tinha saltado uma barreira para o "lado de lá", por muitas coisas que viessem a acontecer não voltaria atrás, o que devia ter sido feito estava feito,. Agora era sair por cima, mas o dificil estava superado e este novo "coração" não me iam tirar já. Era uma boa sensação, tinha valido a pena tanta espera, tanta esperança e tanto desespero. A morte estava, pelo menos por agora, superada!

Estive neste quarto de 5 a 27 de janeiro, e dele saí directamente para casa.